O Voo de Manutenção
09 de fevereiro de 2014 12min de leitura
RONALDO BARRETO DE OLIVEIRA
Na formação do piloto policial de helicóptero existe uma seqüência bem definida de requisitos legais e etapas operacionais de formação para assunção do comando de uma aeronave envolvida na atividade de Segurança Pública.
Os requisitos legais são estabelecidos nas normas da Agência Nacional de Aviação Civil e os requisitos e etapas operacionais são particulares de cada Organização.
As missões operacionais exigidas contemplam as particularidades do voo de segurança pública: rapel, mcguire, bambi bucket, área restrita, carga externa, entre outros, que geralmente são treinados na fase de voo avançado.
O voo de manutenção, geralmente, não é contemplado na formação do piloto policial, acabando alguns pilotos do setor de manutenção realizando mais frequentemente esse tipo de voo, e aprendendo, algumas vezes “na raça” com base no manual da aeronave, as particularidades do voo de manutenção.
Nem toda organização, quer de segurança pública, taxi aéreo, escola de pilotagem, entre outros seguimentos, dá a devida importância ao voo de manutenção, alguns até colocam seus pilotos mais novos para estes tipos de voo.
O presente trabalho refere-se às particularidades do voo de manutenção do helicóptero AS350 – Esquilo, onde o fabricante prevê taxativamente no capitulo 8.3., Programa de Testes, do PMV que:
Primeiramente cabe esclarecer que voo de manutenção é um conceito bem genérico com alguns voos específicos:
a) Voo de recebimento é aquele realizado por oficina homologada ao receber aeronave para início de manutenção, deve ser realizado por piloto e mecânico da oficina, com objetivo de constatar o real estado da aeronave e orientar o processo de manutenção;
b) Voo de verificação funcional é aquele realizado depois de saída da aeronave de inspeção programada, manutenção ou a pedido do operador/cliente para verificação de funcionamento de equipamentos ou sistemas, devendo ser realizado por piloto e mecânico da oficina;
c) Voo de entrega é aquele realizado no momento da devolução de aeronave ao seu operador, geralmente realizado por piloto e mecânico da oficina juntamente com piloto e/ou mecânico do operador;
d) Voos de produção são aqueles realizados logo após a aeronave sair da linha de produção onde são balanceados todos os conjuntos, verificados todos os sistemas, bem como todos os itens de sua homologação, como, por exemplo, o re-acendimento do motor em voo.
Os voos citados não devem ser confundidos com ensaios em voo cujo conceito está ligado ao desenvolvimento e certificação de produtos aeronáuticos. É um ramo da engenharia aeronáutica onde os voos de experiência são realizados por pilotos formados especificamente em ensaios em voo juntamente com engenheiros aeronáuticos.
Para cada tipo de intervenção de manutenção, o capitulo 8.3 do PMV irá informar quais verificações funcionais devem ser realizadas, referenciando uma ou mais fichas de teste a serem cumpridas, como no exemplo abaixo do AS350 B2VEMD:
As fichas de teste irão descrever as verificações funcionais a serem realizados e os resultados esperados, conforme exemplo abaixo, com visão parcial da Ficha de Teste N° 2D.
No exemplo abaixo, algumas verificações tem como requerido somente uma resposta com opção de bom ou ruim, todavia é importante anotar os valores exatos de cada verificação quando se tratar de parâmetros mensuráveis, por exemplo, se é requerido apagar a luz do sistema hidráulico, no painel de alarmes, com NR menor que 200 RPM ou 110 RPM, é importante não registrar somente se ocorreu dentro do previsto (bom ou ruim), mas também os valores obtidos que poderão ser empregados em uma eventual manutenção preditiva, que irá se basear no declínio de performance sugerindo uma intervenção antecipada no sistema envolvido.
O voo de manutenção é um trabalho em equipe, envolvendo piloto e mecânico, que conhecedores das ações a serem realizadas em cada ficha, e treinados na execução dos testes, fazem o voo buscando levar o sistema afetado na manutenção ao seu limite previsto em manual de manutenção, dessa forma garantindo ao piloto operacional que a aeronave tenha margem de segurança e a manutenção realizada restabeleceu as condições originais do equipamento. Devido aos riscos serem muito maiores nesses voos se faz necessário o treinamento em voos de manutenção e em emergências por parte dos envolvidos.
Na ficha abaixo, corroborando com a ideia de treinamento de emergências, em destaque o resultado a ser obtido no teste – não apagar o motor – o que caberia, na verdade, nas alternativas de resultados se serem obtidos, os campos bom e muito ruim.
Além das manobras e testes previstos no PMV, existem as previsões do manual do motor, as que podem ser adaptadas pelo operador conforme ação de manutenção realizada (adaptação está prevista no PMV) e outras manobras ainda requeridas na produção, entrega e recebimento da aeronave, que junto com as verificações funcionais do PMV e do motor, são transmitidas e exaustivamente treinadas, no caso do AS350 – Esquilo, no curso de Voo de Manutenção oferecido pelo Centro de Treinamento da Helibras, dentre elas destacam-se:
a) VNE com e sem potência – onde o piloto coloca a aeronave em VNE e verifica se ainda existe manobrabilidade (margem de uma polegada de pedais – direito na VNE com potência e esquerdo na VNE sem potência) e o mecânico verifica o nível vibratório.
b) Reversibilidade de servo comando – o piloto induz a condição de endurecimento dos comandos (ao saturar em voo os servos hidráulicos a 120 kt) sendo observado o desaparecimento dos esforços com a saída da condição.
c) Teste hidráulico em voo – verificação dos acumuladores dos servos comandos do sistema hidráulico, em voo de 20 segundos com o teste hidráulico.
d) Cheque do Governador do GTM em Voo – onde é checada operação da válvula dosadora do FCU, sendo requerido o não apagamento do motor na desaceleração e ausência de “stol” na aceleração.
e) Margem de pedal direito – resumidamente em PMD, a certa altitude, deve haver ainda curso de uma polegada de aplicação do pedal direito.
f) Engine Power Check – piloto e mecânico observam e registram parâmetros em voo PMC.
g) Controle e Funcionamento da Válvula de Sangria – piloto e mecânico verificam a abertura e fechamento de válvula de sangria
h) Batente mínino de coletivo – em auto- rotação, é registrado valores de NR em certas altitudes, que devem estar em consonância com as rotações exigidas em PMV para cada altitude (gráfico específico), alem disso é verificada a dessincronização da roda livre do motor.
i) Controle de NG máxima – objetivo é verificar se a regulação do motor permite que este atinja o valor máximo de NG correspondente a condição voada (pressão e altitude)
j) Balanceamento de rotor principal, de cauda e eixo de acionamento – no solo, no pairado e em voo é ensinado ao mecânico e piloto todas as etapas do balanceamento dos conjuntos dinâmicos.
O voo de manutenção começa muito antes do giro dos rotores. Piloto e mecânico devem estar em perfeita harmonia, e devem cumprir algumas etapas:
a) conhecimento dos trabalhos executados na aeronave,
b) conhecimento das fichas de teste a serem executadas,
c) conhecimento das verificações funcionais contidas nas fichas de teste,
d) briefing de manutenção sobre: as verificações a serem realizadas com a divisão de funções a bordo e nos testes (há testes que exigem que o piloto coloque a aeronave em certa condição e sejam anotados alguns parâmetros, como pode se tratar de condição crítica de voo, devendo sair da condição com brevidade, deve ser combinado quem observa cada parâmetro, outra boa opção é tirar uma foto no VEMD no momento que o piloto informa que está na condição exigida).
e) briefing de emergência onde são analisadas as possibilidades de falhas, são estabelecidos os procedimentos de cada envolvido. É muito importante que o piloto revise antes de cada voo os procedimentos de emergência e limitações da aeronave.
f) escolha de local adequado para a verificação funcional, que seja autorizada, pelos órgãos de controle, a ascensão as altitudes exigidas na ficha, com área livre onde haja um cone de segurança, onde será possível uma aproximação e pouso seguros em caso de emergência. As manobras críticas não devem ser realizadas em local habitado.
g) avaliação de meteorologia criteriosa para que a verificação não seja “mascarada”, por exemplo: não se deve fazer balanceamento com ventos acima de 15kt, batente mínimo de coletivo não se faz em atmosfera turbulenta, NG máxima deve ter um teto alto, se for feita abaixo de 4000ft, geralmente a limitação de torque pode chegar antes da limitação de NG.
h) pré-voo detalhado de mecânico e piloto com ênfase no que foi trabalhado na aeronave.
Cumpridas essas ações, o giro no solo deve ser realizado com muita atenção, sendo por vezes mais importante que o voo em si, deve ser feito sem abreviar etapas, algumas manutenções nem exigem o voo, somente verificação em solo, o que é previsto também na RBHA 91, 91.407. (c):
Observa-se ainda no mesmo item da RBHA 91, na letra (b), que deve estar presente no voo de manutenção somente pessoas com função a bordo, é vedado participação no voo de pessoas não envolvidas com a manutenção, nos casos de se exigir aeronave com peso máximo de decolagem para a verificação funcional, devem ser levados lastros.
Como o piloto está olhando muito para o painel e instrumentos e o mecânico para os equipamentos, ter mais um tripulante a bordo com a função de olhar para fora, com atenção a tráfegos e pássaros é importante.
No voo deve haver disciplina de ruídos na cabine, sendo falado somente o necessário. É importante ser claro e conciso nas informações, ter ensaiado em solo o roteiro em uma seqüência lógica, de modo a se obter a sinergia necessária na equipe.
Utilizar um pouco mais de fricção nos comandos irá ajudar o piloto a manter certas condições criticas de voo e, se necessário, a mexer em algum instrumento.
O ajuste de altímetro deve ser sempre padrão – 1013 hPa – para que a verificação seja corretamente realizada e ao se colocar os dados nos gráficos tenham-se os verdadeiros resultados.
Os testes de rádio, altimetria, VOR, ADF, GPS entre outros aviônicos devem ser realizados em solo, quando possível, e em voo conforme o manual dos respectivos fabricantes.
Após a saída da aeronave de manutenção, por exemplo, de uma inspeção de 100 horas, a aeronave tem uma degradação de seus sistemas, natural e esperada, por isso o critério de aceitação do ponto de vista da manutenção, é diferente do ponto de vista da operação.
Exemplos:
1) o limite de vibração vertical em voo, conforme manual, é de 0.2 IPS, é aceitável receber uma aeronave Esquilo saída da manutenção com vibração de 0.18 IPS? Sim, analisando exclusivamente o manual, “está dentro”, todavia essa aeronave irá voar 100 horas para próxima inspeção, e certamente esse balanceamento irá degradar e será necessário fazer uma intervenção antes da próxima inspeção de 100 horas, daí a experiência demonstra que é razoável ter uma margem maior em relação ao limite estabelecido;
2) para a operação, conforme capitulo 4 do PMV (procedimentos normais), a rotação do rotor principal em voo é de 390 +4 /-5 RPM, ou seja, entre 385 e 394 RPM, para a manutenção, capítulo 8 do PMV o requerido é 393 +-1 RPM, que é o que o voo de manutenção irá buscar ajustar, garantindo que mantenha as condições de operação até a próxima inspeção.
Geralmente os testes são realizados com o mecânico no acento da frente à esquerda, local do segundo piloto, facilitando nas verificações funcionais, por exemplo, na leitura de “tracking” no balanceamento do rotor principal, não é comum o voo do segundo piloto, o que não é vedado, devendo ser verificado na ficha de teste e nas verificações funcionais se é adequado levá-lo a bordo, porém não é o voo para o 2P fazer hora ou voar, deve ter uma função a bordo relacionada ao voo de manutenção.
Como foi demonstrado, o voo de manutenção do AS350 – Esquilo é bem complexo, exigindo planejamento e particularidades de pilotos e mecânicos envolvidos.
As Organizações de Segurança Pública devem dar a devida atenção a este tipo de voo, doutrinando sua realização através de Procedimento Operacional Padrão, de forma a aumentar a segurança operacional e qualidade dos serviços de manutenção aeronáutica.
Na formação dos mecânicos de manutenção aeronáutica e dos pilotos policiais, na fase de voo avançado, deve haver no mínimo duas horas de teoria e meia hora de voo dedicados ao voo de manutenção, ensinando resumidamente suas particularidades, a realização de Power Check (que é previsto também no capítulo 4 do PMV – procedimentos normais), as técnicas de se proceder em coletas e registros de dados de manutenção, e testes de menor complexidade, familiarizando piloto e mecânico para que no cumprimento de alguma verificação funcional não venham a aprender pela velha metodologia da tentativa e erro.
Para os pilotos e mecânicos da Oficina de manutenção e das Bases com Oficina, em razão da maior quantidade e complexidade das verificações funcionais que irão executar, deve haver o treinamento em Curso de Voo de Manutenção oferecido pelo fabricante, realizando a reciclagem no mínimo de dois em dois anos.
O Autor é Capitão da Polícia Militar de São Paulo e Comandante de Aeronave, Instrutor de Voo e Piloto de Manutenção no GRPAe.
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