O rompimento da barragem de Brumadinho entrou na rota da PRF
08 de março de 2019 13min de leitura
08 de março de 2019 13min de leitura
A hora do almoço é uma ótima oportunidade para reunir a família, e a do Alves leva este momento bem a sério. E foi na casa desta família, em um bairro da cidade de Bonito, no Mato Grosso do Sul, que um peixe foi especialmente preparado para o almoço daquela sexta-feira. Flávio Alves (46), que é policial rodoviário federal há 25 anos, perguntou à filha Flavinha, de apenas 3, como foi o dia na escola. “O dia foi bem legal, normal, papai”, declarou a futura médica. “Pelo menos é o que ela diz pra mim e pra Thaís (mãe)”, diz o pai com ar de riso.
A 330 quilômetros dali, na Base Regional de Operações Aéreas da Polícia Rodoviária Federal (PRF), em Campo Grande, capital sul-mato-grossense, Ênio Aparecido (44) e Maurício Pepino (36), também integrantes da mesma corporação policial, conversavam sobre as novas aeronaves que serão adquiridas dentro do processo de renovação da frota.
“O Koala nos dará melhores meios para fazermos resgates que os 407; estou ansioso para pilotar a máquina”, falava o Ênio para o Maurício, se referindo aos modelos de helicópteros da PRF. Mais longe ainda, estava o policial rodoviário federal José Rossy Jr.(41); no caso, eram mais de 1.400 quilômetros que os separava dos colegas Alves, Ênio e Maurício; ele mora em Porto Alegre.
O Rossy, que também é médico, estava almoçando e pensando nos preparativos para a conclusão de sua especialização – psiquiatria.
Neste mesmo horário, em que o Flávio Alves, sua família e o José Rossy almoçavam, milhões de brasileiros faziam o mesmo. Afinal, às 13 horas o estômago ronca mesmo; ninguém é de ferro. Em um refeitório de uma empresa de mineração, cerca de 200 pessoas faziam o mesmo.
Outros funcionários desta mesma mineradora já haviam almoçado e estavam de volta ao trabalho. Ao todo, mais de trezentas pessoas se encontravam nas dependências da Mina do Córrego do Feijão, na região de Brumadinho, em Minas Gerais, pertencente à Vale. Só que este momento, onde a maioria aproveita para relaxar, brincar com os colegas de trabalho, planejar os momentos de lazer e, claro, matar a fome, foi marcado por um estrondo, seguido por um corre-corre sem rumo e sem que ninguém pudesse ter tempo de entender o que, de fato, estava acontecendo. Aquele momento era, na verdade, a última refeição na vida daquelas pessoas.
Todos eles acabaram engolidos pelo mar de rejeitos vindos da Barragem 1 da mineradora. Tinha início ali a maior tragédia que se abateu sob o nosso país. Até a conclusão desta matéria, 180 corpos haviam sido localizados. Outras 130 pessoas continuam desaparecidas.
O rompimento da barragem de rejeitos de Brumadinho logo ganhou espaço na mídia nacional. Não poderia ser diferente, não é? Há pouco mais de três anos, uma tragédia de proporções menores, nem por isso menos devastadora, foi motivo de lamentação e revolta em todo o país. Como logo ganhou repercussão viral, o Flávio Alves, piloto de helicóptero; o Ênio Aparecido, também piloto; o Maurício Pepino, operador de equipamentos especiais e o José Rossy ficaram sabendo do fato.
Na verdade, não ficaram só sabendo, pensaram de maneira igual; a convocação para trabalhar no resgate de vítimas era quase certa. Não deu outra. Ainda na sexta-feira, ficaram em estado de Pronto Emprego. Passadas cerca de 44 horas depois do rompimento da barragem, os três primeiros policiais já estavam voando para atuarem em Minas Gerais. Um quarto, Carlos Eduardo Nascimento Silva, que é operador de equipamentos especiais, compôs aquela que seria a primeira equipe da Divisão de Operações Aéreas da PRF a chegar àquele cenário devastado pelos rejeitos da barragem.
A esperança que veio do céu – A Igreja Nossa Senhora das Dores recebe fiéis desde os anos de 1940, quando começou a surgir os primeiros moradores do povoado do Córrego do Feijão. Esta construção da Igreja Católica foi poupada do mar de lamas por conta da sua localização, já que fica em um ponto mais afastado da área da barragem de Brumadinho.
A partir de 25 de janeiro de 2019, ela continuou recebendo as pessoas de portas abertas; mas não eram mais fiéis em busca de paz espiritual. Aquela “Casa de Deus” foi transformada em uma Base de Comando de Operações.
Bombeiros, Militares das Forças Armadas, policiais rodoviários federais, médicos, enfermeiros, veterinários e voluntários passaram a habitar aquele lugar. A manhã do domingo foi o momento em que os quatro policiais rodoviários federais chegaram à região do desastre, embarcados em um helicóptero modelo Bell 407, usado pela PRF para missões de patrulhamento e resgate.
A configuração usada nesta situação foi a de resgate, pois a esperança da equipe era que poderia encontrar vítimas vivas na região. Assim que chegaram na base, os quatro integrantes se puseram sob a coordenação do Corpo de Bombeiros Militar de Minas Gerais. O espaço aéreo estava sob o controle da Força Aérea Brasileira (FAB).
Um cenário assustador – Antes mesmo de chegar à Igreja de Nossa Senhora das Dores, ainda durante o voo de deslocamento, a tripulação da aeronave da PRF percebeu a real dimensão da tragédia. Assim que eles passaram pelo município de Brumadinho, alcançaram a foz do Córrego do Feijão, onde nasce no Rio Paraopebas.
As águas do rio e do córrego estavam tomadas por lama. “Eu tentei buscar uma palavra para sintetizar aquele cenário. Tragédia, desastre, destruição ou devastação não conseguiam traduzir aquilo que eu via. Só uma frase se aproximava da sensação que senti naquele momento: o Inferno de Dante se abateu sobre os inocentes”, descreveu emocionado o piloto Ênio, que está na PRF há 20 anos.
Não muito diferentes foram as impressões do Maurício Pepino. A primeira sensação descrita por ele foi a de que a área afetada era muito maior do que ele imaginava. “Eu passei por tantas e tantas situações ao longo da minha carreira, me deparei com coisas impressionantes, mas o que vi lá foi um cenário apocalíptico”, relatou o tripulante.
O Maurício falou sobre o efeito que o rompimento da barragem causou na área afetada. Ele fez uma analogia com o ato de barbear o rosto. “A barragem tinha uns 150 metros de altura.
E toda aquela terra, junto com a água, desceram destruindo a mata e tudo o mais como se fosse um barbeador deixando o rosto limpo, sem barba”, lembrou o policial.
O coordenador da equipe, Flávio Alves, que exerce a função de piloto, tem uma larga experiência em operações em regiões de catástrofes. Ele atuou no deslizamento do Morro do Baú, ocorrido no estado de Santa Catarina, em 2008, além de ter trabalhado também nas enchentes que afetaram diversos municípios alagoanos em 2010.
Alves disse que a situação em Brumadinho foi completamente diferente das outras. “O que vimos ali foram imagens que ficarão marcadas para sempre em nossas memórias”, frisou.
Lama e cheiro de morte – No início, os trabalhos da equipe eram destinados a realizar buscas de possíveis sobreviventes. Nenhum foi encontrado. Durante os sobrevoos, a tripulação observava se havia pessoas em busca de socorro.
Com a ausência de vidas, eles passaram a identificar corpos e iam marcando com tubos de PVC coloridos os pontos onde os mesmos eram vistos, para facilitar a visualização e, ao mesmo tempo, registravam as coordenadas para que pudessem retornar com os bombeiros, que faziam o recolhimento dos cadáveres.
O que muito impressionou os policiais foi que apenas um corpo inteiro foi encontrado. Por conta da forma como foram atingidos, engolidos por lama contendo objetos metálicos, concreto e madeira, os corpos acabavam sendo destroçados.
Como o helicóptero empregado na missão pela PRF era o de maior porte, ele foi bastante útil para levar para os locais onde os bombeiros trabalhavam diversos equipamentos, tais como: motobombas, motosserras, bombas estacionárias, desencarceradores, mangueiras, cordas e qualquer outro tipo de aparato utilizado nos resgates ou extrações de vítimas.
Vários voos foram feitos para levar os bombeiros para os pontos onde haviam sido encontrados corpos, assim como, para trazê-los de volta ao centro de comando da operação.
O número de missões deste tipo foi crescendo a cada dia. O total de acionamentos, como são chamados os deslocamentos para cada missão, chegou a 20 por dia. “Nós éramos demandados o tempo todo, desde as 6 da manhã até o pôr do sol. Simplesmente, esquecíamos o cansaço.
O desejo de colaborar, de encontrar alguém, de dar uma esperança para os familiares das vítimas fazia com que esquecêssemos as grandes adversidades”, pontuou o operador de equipamentos especiais Pepino.
E como não bastasse o cenário desolador, o mau cheiro logo começou a fazer parte da rotina. Eram os corpos em decomposição denunciando ainda mais a tragédia. Pepino falou que, no início das ações toda a tripulação usava máscaras para amenizar a sensação angustiante que aquele odor, vindo dos corpos, marcava o território devastado.
No entanto, depois de virem os bombeiros em uma situação muito mais adversa, mergulhados na lama, movidos pela mais profunda esperança de encontrar os restos mortais das vítimas, sem máscaras e vibrando quando conseguiam resgatar algum corpo, toda a tripulação da PRF abriu mão do equipamento.
Era a solidariedade se fazendo presente cada vez mais forte. “Tragam o meu pai e a minha mãe de volta, por favor”; “Meu irmão está lá. Ele se chama Luís”, clamavam alguns moradores à equipe pelos seus familiares, que insistiam em não mais voltar pra casa. Ouvindo palavras tão angustiantes assim, todos os integrantes da missão de Brumadinho renovavam as forças para continuar.
Além da busca por pessoas – O Córrego do Feijão tinha pessoas, casas, pousadas, animais, uma vegetação exuberante, e o principal, vidas. Durante os sobrevoos foram encontrados diversos animais ainda vivos naquela área tomada pela lama.
Uns poucos encontravam-se livres desta mesma lama; mesmo assim, ilhados. Outros tantos, atolados; aguardando a morte chegar. Eram, principalmente, cães, cavalos, bois e vacas. Logo que esta realidade foi percebida, as ações de resgate destes animais tiveram início. As tripulações da PRF sempre voavam com médicos veterinários, que eram os responsáveis pelo atendimento dos bichos. Para tratar e resgatar os de grande porte, eram usados dardos com sedativos para garantir a operação.
Após os primeiros socorros, os animais eram içados do local e conduzidos até a base, pois o campo de futebol ao lado da igreja era usado como heliponto e área de recebimento dos bichos. Quando o atendimento e retirada não podia ser feito de maneira imediata, a tripulação alimentava e hidratava os animais para que estes reunissem forças até o seu resgate. Os veterinários medicavam aqueles que estavam feridos; foram muitos.
Em um momento oportuno, estes eram retirados daquele inferno. O policial rodoviário federal é preparado para preservar vidas, seja evitando um acidente nas rodovias federais brasileiras, seja prestando os primeiros socorros e resgatando uma vítima.
Só que em três momentos em Brumadinho os tripulantes tiveram que encarar uma situação que vai de encontro ao juramento prestado em sua formatura; o sacrifício de vidas. Seguindo todo o protocolo para casos como estes, os médicos veterinários se depararam com dois bovinos e um equino atolados e extremamente debilitados.
Os técnicos avaliaram o estado de saúde dos animais e constataram alto grau de debilidade e diversas fraturas; enfim, estavam agonizando. Nada poderia ser feito para que aquelas vidas fossem salvas. Restou o sacrifício.
Mente sã, corpo são – Os policiais rodoviários federais que fizeram parte da força-tarefa em Brumadinho permaneceram duas semanas na região. Alves, Ênio, Pepino e Nascimento chegaram logo no domingo (27), e ficaram até o final da missão.
Mas, só no final da primeira semana é que outros quatro tripulantes se apresentaram para o trabalho na base. Foram os policiais Lisandro Martinelli, Wagner Braga, Amauri Bonoto e Evandro Besson. Foi quando tornou-se possível à primeira equipe ter algumas horas a mais de descanso.
“O nosso primeiro almoço, à mesa, só aconteceu na quinta-feira. Até lá, nós comíamos lanches, e normalmente embarcados na aeronave”, disse, com ar de alívio, o piloto Alves. As inúmeras missões produziram, necessariamente, corpos e mentes extenuados. O ambiente, pelo fato de ter se transformado em um terrível cenário de morte, conduz qualquer pessoa a um estado depressivo.
Mais do que o cansaço físico, o cansaço mental poderia ser muito mais comprometedor para o bom desempenho da missão. Quando você está embarcado em uma aeronave, ora voando, ora pairando sobre pessoas e coisas, as responsabilidades se multiplicam.
Nenhum novo acidente seria permitido; não haveria espaço na cabeça de ninguém para o surgimento de mais vítimas. E foi assim que entrou em cena o José Rossy, policial que fez uso dos seus conhecimentos como médico psiquiatra.
Ele partiu de Porto Alegre para fazer uma análise dos possíveis efeitos que aquela situação de estresse e trauma poderia estar exercendo na cabeça da equipe da Divisão de Operações Aéreas da PRF.
O desempenho, concentração e o que eles estavam emocionalmente absorvendo eram as principais preocupações do Rossy.
Os integrantes foram analisados em grupo e individualmente. “Eles chegaram na fase mais crítica do processo, e por isso eu busquei possíveis desajustes na saúde mental, emocional e física de cada um deles”, lembrou o psiquiatra. O Rossy destacou que os efeitos traumáticos de uma vivência como esta podem surgir dias ou meses depois.
“Há, às vezes, um efeito retardado e que só aparece tempos depois da vivência do fato. São síndromes ou transtornos conhecidos no campo da psiquiatria como Transtornos de Estresse Pós Trauma (TEPT).
Por isso, farei um acompanhamento de todos os colegas ao longo dos próximos meses”, frisou o especialista.
Uma sensação que ficou algo para trás – Uma coisa que se estabeleceu nos pensamentos dos integrantes da missão foi a sensação de pequenez. O ser humano é algo muito pequeno, vulnerável, ínfimo. Diante de uma visão tão aterradora e marcante, a tragédia de Brumadinho trouxe vários ensinamentos para as vidas feridas dos sobreviventes e, em especial, para todos os profissionais que trabalharam na região. Marcas indeléveis foram impostas às memórias daqueles que lá estiveram. “É impossível voltar de lá a mesma pessoa.
Fomos úteis, mas somos insignificantes diante do todo”, refletiu Flávio Alves. A equipe partiu de Brumadinho com a certeza do dever cumprido. Todos os esforços foram dedicados àqueles que perderam a vida de maneira tão cruel e dramática.
As demonstrações de abnegação, doação e profissionalismo ficaram mais que evidentes quando olhamos para o empenho dos policiais rodoviários federais, bombeiros militares, médicos, integrantes das Forças Armadas, enfermeiros, veterinários, além de todos os voluntários que partiram para a região, unidos por um ideal; levar o mínimo de conforto aos familiares de todas as vítimas do rompimento da Barragem de Brumadinho. “Em 20 anos na PRF, depois de passar por tantas situações impostas pela carreira, pela primeira vez saí de uma delas com a sensação de que ficou algo para trás”, finalizou Ênio Aparecido, em uma frase que certamente condensou a impressão de todos aqueles que trabalharam no mais profundo Inferno de Dante.
Fonte: Coordenação de Comunicação Social/PRF
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