O índice de distância do poder (IDP) e o discurso mitigado no contexto da segurança operacional.
29 de dezembro de 2018 6min de leitura
29 de dezembro de 2018 6min de leitura
THIAGO VITORIO DE OLIVEIRA
Capitão PM, piloto policial de helicóptero, atualmente trabalha na Seção de Segurança de Voo do Comando de Aviação do Estado (COMAVE).
A ausência de coordenação de cabine entre os membros da tripulação de uma aeronave frequentemente figura entre fatores contribuintes de acidente aeronáutico, segundo dados do Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (CENIPA). Refletindo sobre o potencial de uma comunicação clara e oportuna no contexto da Aviação de Estado, percebemos o quanto ela é capaz de evitar um acidente.
Ao ler a obra Fora de Série: Outliers, de Malcolm Gladwell, da Editora Sextante1, que faz uma interessante investigação sobre os aspectos que levam pessoas ao sucesso, um capítulo do livro chamou bastante atenção. Intitulado “A teoria étnica dos acidentes de avião”, o trecho retrata como uma empresa aérea asiática deu a volta por cima após viver um grave acidente aeronáutico. Após a investigação apontar aspectos culturais da tripulação como fator contribuinte ao acidente, a empresa tomou medidas para minimizar a influência destes aspectos na comunicação e nas relações entre os membros da tripulação. E o principal aspecto cultural desenvolvido para se evitar novos acidentes foi investigar como as relações de autoridade dentro da cabine interferiram na exposição de observações que alertavam sobre os riscos envolvidos.
Entre as décadas 1960 e 1970, segundo a obra de Gladwell, o psicólogo holandês Geert Hofstede, que trabalhava para o departamento de recursos humanos de uma grande multinacional, percorreu o mundo entrevistando funcionários sobre como as pessoas resolviam os problemas, como trabalhavam juntas e quais eram suas atitudes em relação à autoridade. Com as respostas, Hofstede desenvolveu um enorme banco de dados para analisar como as culturas são diferentes. As “dimensões de Hofstede” são um dos paradigmas mais utilizados atualmente em psicologia intercultural.
No contexto da comunicação entre os membros de uma tripulação, talvez a mais interessante de todas as dimensões de Hofstede seja o que ele chama de “índice de distância do poder” (IDP). A expressão envolve atitudes em relação à hierarquia, especificamente o grau em que uma cultura valoriza e respeita a autoridade. Entre as perguntas que Hofstede formulou para medir o IDP, está: “Com que frequência, na sua experiência, o seguinte problema ocorre: funcionários com medo de dizer que discordam de seus supervisores?”. Imaginemos o efeito positivo dos trabalhos de Hofstede para o âmbito da segurança operacional.
A pergunta de Hofstede era a mesma que especialistas em aviação vinham fazendo aos copilotos quanto às suas interações com os pilotos. Trazendo para o contexto da Aviação de Segurança Pública, tem-se a pergunta quanto à exposição de um posicionamento de um membro da tripulação ao comandante da aeronave: “Em que medida o membro da tripulação é capaz de expor sua opinião ou observação diante da autoridade do comandante da aeronave?”.
Hofstede sugeriu que o sucesso na tarefa de convencer um copiloto a se impor por meio da exposição de sua observação dependeria muito do posicionamento do seu país na escala de distância do poder. E o que é mais surpreendente na leitura da obra de Gladwell é que o Brasil figura entre os cinco mais altos IDP de pilotos por país.
Portanto, segundo a obra, na relação entre os membros de uma tripulação no que se refere à escala de distância do poder, os copilotos brasileiros estão entre os que têm maior dificuldade de expor uma observação diante de uma situação de anormalidade. Neste contexto, é interessante falar sobre o discurso mitigado, que se trata de uma tentativa de modificar, abrandar ou suavizar o sentido do que está sendo falado.
É comum utilizarmos o discurso mitigado quando queremos ser educados com alguém ou quando nos sentimos envergonhados e constrangidos. É justamente o que acontece quando procuramos ser mais respeitosos com o superior hierárquico no momento em que procuramos expor uma opinião ou apontar uma observação.
Na dificuldade de um membro da tripulação reportar uma observação, muitas vezes o discurso mitigado é o recurso utilizado, tentando abrandar ou suavizar seu relato. Mas até que ponto este recurso é efetivo quando se fala em segurança operacional? Por exemplo, ao sobrevoar um local de ocorrência em que é conhecido por parte da tripulação e em que existem diversas torres de alta tensão, um membro da tripulação pode apontar o risco de colisão com o obstáculo por meio de questionamentos: “Tem muita fiação espalhada pelo local aqui, não é?”, “As torres de energia são altas, não são?”.
Com clareza e assertividade na exposição de sua observação, pode também reportar: “Comandante, fiação na proa!”, “Comandante, mantenha a altura! Torre de energia na nossa vertical!”. São formas mais claras e diretas de se apontar um risco à operação. No primeiro voo que realizei no Batalhão de Radiopatrulhamento Aéreo da Polícia Militar de Minas Gerais em 2014, quando fui transferido para a Unidade, pude presenciar um Capitão exercendo a função de copiloto e um Major exercendo a função de Comandante de Aeronave.
Cabe frisar que naquela ocasião, o Capitão copiloto já havia sido promovido pelo Comando da Unidade à função de Comandante de Aeronave, porém exercia a função de copiloto durante aquele voo por questões de ajustes à escala de voo. Eu tripulava a aeronave como um estagiário e observador. No momento em que sobrevoávamos a região sul da cidade, por sobre um aglomerado urbano, podemos perceber uma grande antena de rádio em um ponto alto do relevo. O Capitão copiloto de imediato perguntou ao Comandante da Aeronave apontando para o obstáculo ainda longe: “O senhor está visual com a antena de rádio na proa? ”. E o Comandante respondeu: “Sim, estou visual!”.
Na minha inexperiência à época, comecei a refletir o porquê de o copiloto ter perguntado ao comandante algo que parecia tão óbvio para um piloto tão experiente como aquele Major que estava à frente. Estaria o copiloto duvidando da capacidade e proficiência do comandante?.
Após o voo, em conversa com o copiloto sobre aquele fato, pude perceber a importância de se observar e se certificar de que todos da tripulação conheciam e estavam cientes do risco à frente. Tive uma das minhas primeiras aulas na aviação de segurança pública, o quanto uma comunicação clara, assertiva e direta contribui para se evitar um acidente aeronáutico.
Por fim, pude perceber que a relação entre superior hierárquico e subordinado, nas diferentes funções exercidas dentro e fora da cabine no contexto da operação, pode ser respeitosa e disciplinada sem comprometer a segurança da operação. Uma observação ou apontamento claro, assertivo e direto é a maneira honesta e respeitosa de se compartilhar uma informação essencial à segurança. Reflete a maturidade e preparo dos profissionais que trabalham nas operações aéreas da Aviação de Estado.
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