Ministro do STF vota por restringir uso de helicópteros em operações policiais no RJ
18 de abril de 2020 15min de leitura
18 de abril de 2020 15min de leitura
Distrito Federal – O Supremo Tribunal Federal (STF) começou a julgar, na sexta-feira (17/04), uma ação que questiona a política de segurança pública adotada pelo governo do Rio de Janeiro. Relator da ação, o ministro Edson Fachin já proferiu seu voto, determinando, entre outras coisas, a restrição do uso de helicópteros em operações policiais e regras para operações em localidades próximas a escolas, creches, hospitais ou postos de saúde.
O tema é julgado na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, ajuizada pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB). O julgamento – neste momento, apenas da medida cautelar – está sendo realizado por meio de plenário virtual, e está previsto para terminar no dia 24 de abril. Pode, entretanto, ser interrompido por pedido de vista.
Em voto de 97 páginas, Fachin analisa ponto a ponto os pedidos do partido autor, confrontando com as alegações do Governo do Rio de Janeiro, da Procuradoria-Geral da República (PGR) e da Advocacia-Geral da União (AGU) sobre cada um desses temas.
O ministro utiliza como base de sua decisão o julgamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Nova Brasília vs. Brasil, no qual o Brasil foi condenado, em 2017, por duas chacinas ocorridas em 1994 e 1995 na comunidade Nova Brasília, no Complexo do Alemão, durante operações policiais no Rio de Janeiro. Em cada chacina, foram mortos 13 jovens.
Inicialmente, analisa aspectos formais da ADPF, explicando por quais motivos a ação deve ser conhecida. O ministro registra que, ao indicar como ato do poder público a adoção de uma política pública, o partido autor da ADPF deixa de apontar de forma precisa e individualizada os atos que constituem essa política pública. “São os atos, individuais e concretos, que justificam a propositura de uma arguição de descumprimento de preceito fundamental. A identificação do ato ou dos atos é indispensável para que se examine a própria formulação da política pública”, diz.
Entretanto, lembra o precedente do STF na ADPF 347, na qual o plenário reconheceu o estado inconstitucional de coisas do sistema prisional brasileiro. Acolhe, ainda, os argumentos do partido no sentido de que houve omissão do estado brasileiro em implementar o que foi decidido pela Corte Interamericana de Direito Humanos no caso Nova Brasília.
“Embora o requerente não tenha trazido aos autos, há, lamentavelmente, um vasto repertório de denúncias feitas contra o Estado brasileiro relativamente à atuação das forças de segurança. Registre-se que, de acordo com dados do Instituto de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, o número de mortos por intervenção de agentes do Estado, que, em 2003, já chamavam a atenção do Comitê de Direitos Humanos, continuou a subir. Em 2019, foram registradas 1.810 mortes por intervenção de agentes do Estado”, destaca Fachin.
O ministro entende que “tais dados corroboram as conclusões a que chegaram as diversas organizações internacionais de direitos humanos”, por isso, em relação ao requisito da ‘violação generalizada’ à luz do direito internacional dos direitos humanos”, deve-se reconhecê-lo como efetivamente preenchido nesta ADPF.
Assim, após rejeitar as preliminares de não conhecimento da ação, passa a analisar cada um dos pedidos do PSB.
Em memorial enviado ao Supremo, o PSB diz que o direito à segurança, previsto na Constituição, “demanda do Estado políticas públicas capazes de garantir a vida, a liberdade, a integridade física e o patrimônio das pessoas, protegendo-as de lesões e ameaças”, mas não é isso o que se observa no caso do Rio de Janeiro. “Infelizmente, a política de segurança pública do Rio ameaça direitos constitucionais da população fluminense, como a vida e a dignidade, sobretudo dos moradores de favelas, em sua maioria pessoas negras”, diz a manifestação.
A Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro e as organizações Justiça Global, Conectas e Redes da Maré, que atuam na causa como amici curiae, que apoiam os pedidos do PSB afirmaram em memorial que “o avanço da pandemia de Covid-19 sobre os espaços de favelas e periferias do Rio de Janeiro elevam sobremaneira a necessidade de medidas imediatas do Estado Brasileiro na garantia do direito à vida, à saúde e à integridade física de milhões de moradores”.
No início de março, o PGR Augusto Aras se manifestou pela procedência parcial da ADPF, opinando pela inconstitucionalidade do uso de helicópteros nas operações policiais.
Na decisão, o ministro indefere o primeiro pedido do PSB, para determinar que o estado adote um plano de redução de letalidade policial. O ministro entende que, em caráter liminar, não é possível fazer essa determinação porque outros órgãos precisariam ser ouvidos.
Para Fachin, há relevância no fundamento trazido pelo partido para o pedido de elaboração de um plano, mas ainda não tem condições de ser examinado, no mérito. O ministro diz que “há omissão relevante do Estado no tange à elaboração de um plano para a redução da letalidade dos agentes de segurança”, que foi inclusive apontada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos na sentença do caso Nova Brasília vs. Brasil, em que se fixou que “o Estado deverá adotar as medidas necessárias para que o Estado do Rio de Janeiro estabeleça metas e políticas de redução da letalidade e da violência policial”.
Assim, o ministro diz que o reconhecimento da omissão, a declaração da mora e a atribuição de responsabilidade ao estado do Rio de Janeiro “suscitam dúvidas, ao menos no atual momento processual, sobre a utilidade do provimento cautelar que se limite a expedir novo comando”, porque “as consequências e as responsabilidades jurídicas que emergem do descumprimento de uma sentença da Corte Interamericana em nada se distinguem do descumprimento de uma decisão do Supremo Tribunal Federal”.
Além disso, diz que “a eventual elaboração de um plano deve contar com colaboração de órgãos que não foram ouvidos em sede de cautelar, em particular o Conselho Nacional de Direitos Humanos, entidade nacional que se amolda aos Princípios de Paris sobre o Status das Instituições Nacionais de Proteção da Pessoa Humana”.
O partido pede a suspensão de eficácia do artigo 2º do Decreto Estadual 27.795/2001, que autoriza a utilização de helicópteros em casos de confronto armado direito. “Trata-se, portanto, de autorização específica de uma modalidade, assaz violenta, de uso da força. A dúvida jurídica que subjaz a esse pedido é a de saber se é possível a utilização dessa modalidade de intervenção estatal nas operações policiais”, explica Fachin.
O ministro diz que o Comitê de Direitos Humanos, em recém-editado Comentário Geral nº 36, elucida que é arbitrária a privação do direito à vida sempre que o ato praticado for incompatível com o direito internacional ou com o direito doméstico. Na visão de Fachin, nos princípios formulados pelo comitê, “há diretrizes valiosas para elucidar os limites da atuação estatal”, e a principal obrigação dos estados é a de legislar sobre o tema.
O ministro diz que as leis e regulamentos devem conter protocolos sobre quando a força pode ser utilizada e, para isso, os estados devem incentivar o uso de meios não letais por parte das forças de segurança pública e, sempre que possível, as forças devem optar por esses meios. Por isso, na visão de Fachin, é “impossível imaginar situações nas quais o uso de helicópteros para tiro, o chamado ‘tiro embarcado’, possa ser autorizado”.
“Afinal, o tiro só pode ser dado para prevenir a ocorrência de dano à vida de outrem; deve ser dado aviso prévio, salvo, por evidente, a impossibilidade de se exigir essa atitude; e deve ser dado tempo para que a pessoa que seria atingida possa obedecer à ordem do agente de Estado. É certo que a utilização de helicópteros não se presta a captura, nem deve constituir a primeira opção de uma operação. É certo, ainda, que em nenhuma ocasião civis poderão ser alvos, tal como disciplina a regra mais elementar do direito humanitário internacional”, diz o ministro na decisão.
E continua: “não é difícil compreender por que a utilização de helicópteros é mais comum em operações militares, onde a presença dessas aeronaves permite o respaldo às incursões territoriais que as tropas devam fazer. Transpor essa lógica para locais em que a população civil vive é abusar da largueza conceitual”.
Para o relator, o problema em si não é o Decreto 27.795, e sim sua aplicação. Por isso, entende que a norma contém uma “inconstitucionalidade parcial, na medida em que, sem elencar as hipóteses ou sem fazer referência à estrita necessidade, dá margem a usos ilegítimos das aeronaves”. Destaca ainda que, no exercício de sua competência material para promover as ações de policiamento, o Poder Executivo deve dispor de todos os meios legais necessários para cumprir seu mister, desde que haja justificativa hábil a tanto, verificável à luz dos parâmetros internacionais.
Por isso, defere a medida cautelar pleiteada, em menor extensão, para dar interpretação conforme ao art. 2º do Decreto 27.795, de 2001, a fim restringir a utilização de helicópteros nas operações policiais apenas nos casos de observância da estrita necessidade, comprovada por meio da produção, ao término da operação, de relatório circunstanciado.
O partido pede que o STF determine também que os agentes de segurança e profissionais de saúde preservem todos os vestígios de crimes cometidos em operações policiais, de modo a evitar a remoção indevida de cadáveres sob o pretexto de suposta prestação de socorro e o descarte de peças e objetos importantes para a investigação.
O ministro acolhe o pedido. Novamente, cita as punições impostas pela decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que estabelece requisitos e cuidados de observância obrigatória por parte dos agentes de Estado, quando da
investigação de casos que, em tese, envolvam execuções arbitrárias. A decisão da Corte Interamericana diz que a realização diligências numa investigação médico-legal de uma morte “exige a manutenção da cadeia de custódia de todo elemento de prova forense, o que consiste em manter um registro escrito preciso, complementado, conforme seja cabível, com fotografias e demais elementos gráficos, para documentar a história do elemento de prova à medida que passa pelas mãos de diversos investigadores encarregados do caso”.
Fachin diz que essas determinações também constam da Constituição Federal brasileira, que prevê que a investigação criminal a ser conduzida de forma independente é garantia de acesso à justiça.
“Como os crimes contra a vida são, via de regra, investigados por meio de perícias oficiais (ART. 159 do Código de Processo Penal), tendo em vista que as provas tendem a se desfazer com o tempo, a falta de aditabilidade dos trabalhos dos peritos não apenas compromete a efetiva elucidação dos fatos pela polícia, como também inviabiliza a própria fiscalização cidadã, direito constitucionalmente assegurado. Não há como se conceber que os direitos previstos na Constituição não tenham, por força da incidência do ART. 5º, § 1º, aplicabilidade imediata,
deve do, portanto, o Estado assegurá-lo pelos meios que se fizerem necessários”, diz.
Assim, defere a medida cautelar requerida para determinar que o Estado do Rio de Janeiro “oriente seus agentes de segurança e profissionais de saúde a preservar todos os vestígios de crimes cometidos em operações policiais, de modo a evitar a remoção indevida de cadáveres sob o pretexto de suposta prestação de socorro e o descarte de peças e objetos importantes para a investigação”. O ministro determina ainda que os órgãos de polícia técnico-científica do Rio de Janeiro documentem, por meio de fotografias, as provas periciais produzidas em investigações de crimes contra a vida, notadamente o laudo de local de crime e o exame de necropsia, com o objetivo de assegurar a possibilidade de revisão independente, devendo os registros fotográficos, os croquis e os esquemas de lesão ser juntados aos autos, bem como armazenados em sistema eletrônico de cópia de segurança para fins de backup.
O autor pede que o STF determine que, ao final de cada operação policial, sejam elaborados relatórios que deverão contemplar o objetivo da operação; os horários de início e término da incursão; a identificação da autoridade responsável pela ordem e do comandante da execução e fiscalização da operação; as matrículas dos agentes envolvidos na incursão; o tipo e o número de munições consumidas, de modo individualizado; as armas e os veículos utilizados; e o material apreendido, com indicação da quantidade, além da identificação das pessoas mortas (policiais ou não) e detidas.
Entretanto, o partido reconhece que já existe uma norma da Polícia Civil do Rio de Janeiro neste sentido, a Portaria 832/2018. Fachin observa que, de acordo com a norma, “o relatório produzido ao término de cada operação é exigência de contabilização da atuação estatal. A forma pela qual essa exigência é atendida se dá por um duplo controle: o administrativo e o judicial. Ou seja, em caso de incidentes nessas operações, não basta apenas o envio de informações à própria Polícia Civil, conforme previsão constante da Portaria 832, de 2018, mas também é necessário o envio ao órgão judicial independente encarregado da realização do controle externo da atividade policial”.
Por isso, ao menos por ora, nega a concessão da liminar sobre este ponto.
O partido alega que, no Rio de Janeiro, escolas ficam fechadas durante vários dias por receio do confronto entre policiais e traficantes. Em estimativa feita pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, os moradores de uma comunidade específica poderiam ficar, ao longo de sua formação escolar básica, mais de dois anos sem aulas, se comparado com outras unidades educacionais. Por isso, pede a restrição de operações policiais em áreas próximas a escolas e creches.
Para Fachin, “a suspensão de aulas em virtude de operações policiais, no prazo com que se relata na petição inicial, é inadmissível”.
Por isso, acolhe o pedido formulado pelo autor para determinar que, no caso de realização de operações policiais em perímetros nos quais estejam localizados escolas, creches, hospitais ou postos de saúde, sejam observadas as seguintes diretrizes:
Em relação às investigações, o partido pede que sejam instaurados procedimentos investigatórios autônomos nos casos de mortes e demais violações a direitos fundamentais; que, no âmbito das investigações do Ministério Público ou das polícias, sejam ouvidas as vítimas ou familiares; que, nessas investigações, sejam priorizados os casos em que a vítima é uma criança; e que o MP designe um membro para atuar em regime de plantão.
O ministro concede parcialmente a liminar, para reconhecer que, “sempre que houver suspeita de envolvimento de agentes dos órgãos de segurança pública na prática de infração penal, a investigação será atribuição do órgão do Ministério
Público competente”.
Determina que a investigação “deverá atender ao que exige o Protocolo de Minnesota, em especial no que tange à oitiva das vítimas ou familiares e à priorização de casos que tenham como vítimas as crianças”. Este é um protocolo internacional de investigações de mortes suspeitas, particularmente aquelas em que se suspeita da responsabilidade do Estado.
“Ademais, por ser função essencial do Estado, acolho também o pedido para determinar que, em casos tais, o Ministério Público designe um membro para atuar em regime de plantão”, completa.
Por fim, o ministro acolhe o pedido do partido para suspender o artigo 1º do Decreto Estadual 46.775/2019, que excluiu, do cálculo das gratificações dos integrantes de batalhões e delegacias, os indicadores de redução de homicídios decorrentes de oposição à intervenção policial.
Na visão do ministro, “é preciso reconhecer que a medida vai de encontro com a exigência feita pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Um Estado que apresenta altos índices de incidente dessa natureza deve buscar engajar todo seu quadro de servidores, dando-lhes os incentivos corretos para isso, na tarefa de reduzir ao máximo as intercorrências”. Assim, suspende a eficácia do dispositivo.
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