RONALDO BARRETO DE OLIVEIRA

Manter
Manter a aeronavegabilidade
Manter seguro
Manter conforme certificação do produto aeronáutico
Manter e gerenciar o risco dentro de níveis aceitáveis

A Segurança de Voo ou Segurança Operacional e a Manutenção Aeronáutica trabalham com ações similares e com propósito final uníssono, qual seja, que para cada decolagem resulte ao final do cumprimento da missão um pouso seguro. Ambas caminham lado a lado, uma está fortemente atuante, com seus conceitos, dentro do outra.

Uma das primeiras garantias que uma aeronave possui em sua segurança para voar está alicerçada em seu processo de certificação, que foi conquistado em diversas fases, entre elas a fase de desenvolvimento e produção, com as campanhas de voos de ensaio pelo fabricante, para o cumprimento de rigorosos requisitos dos regulamentos, conforme a categoria da aeronave.

Juntamente com o principal produto final do processo, que é a aeronave propriamente dita, outros importantes e vitais instrumentos também nascem com o novo produto aeronáutico, os Manuais. Entre eles: de manutenção, de voo, ilustrado de peças, programa de manutenção e outros tantos.

Expedido pelo fabricante e aprovado pelos Órgãos Reguladores da Aviação Civil, o programa de manutenção conta com: tempo limite de vida dos componentes, tempo limite de operação dos componentes, tempo entre revisões de cada conjunto e subconjunto, inspeções necessárias com suas periodicidades, referência do cartão de trabalho necessário para cumprir cada intervenção, etc.

Através da Manutenção Aeronáutica almeja-se o cumprimento, de forma sistêmica, do programa de manutenção do fabricante, com o grande desafio de manter a aeronavegabilidade do produto aeronáutico conforme foi certificado. Parece simples e aprova de falhas essa nobre missão: sabe-se o que e quando deve ser feito (programa de manutenção), sabe-se como fazer (manual de manutenção, de práticas correntes e outros) e mesmo assim o fator contribuinte manutenção nos acidentes e incidentes aeronáuticos está presente.

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Em análise as ocorrências envolvendo manutenção de aeronave constata-se que o Fator Humano na Manutenção foi o principal determinante do evento, foi o homem que trabalha na manutenção que, na maioria das vezes por erro, outras poucas por violação, contribuiu com sua ação ou omissão para o evento danoso. A evolução tecnológica e a consagração dos projetos aeronáuticos fizeram com que erros de projetos, materiais e/ou sistemas fossem cada vez menores no universo da manutenção aeronáutica.

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Trabalhar Conforme

Certa oportunidade, no Curso de Coordenador de Manutenção, realizado no Centro de Treinamento Helibras, um instrutor utilizou repetidamente e com muita ênfase a expressão conforme: a tarefa deve ser cumprida conforme, cumprir o cartão conforme, a ferramenta tem que estar conforme, conferir a execução do cartão de trabalho conforme, registrar os serviços conforme, entre outras assertivas.

Trabalhar conforme significa basicamente executar a tarefa com o Manual requerido aberto ao lado do executante. Simples demais? Sim, porém negligencia-se demais no simples, que se transforma num dos maiores perigos latentes que envolvem a Manutenção Aeronáutica, a rotina.

O técnico de manutenção aeronáutica está tão familiarizado com aquele serviço, por exemplo, uma simples troca de um arranque gerador, fez inúmeras vezes,  ensina frequentemente aos auxiliares, ou seja, virou uma rotina, que passa a desconsiderar a necessidade de fazer o serviço com o manual aberto ao seu lado e cumprindo rigorosamente as ações preconizadas, o serviço está fadado a não-conformidade.

Agindo conforme, mesmo sabendo o que fazer, o profissional responsável irá abrir o manual e executará de forma sistemática e orientada o mais simples trabalho, dessa forma, com certeza, o mais experiente mecânico, eventualmente, irá se surpreender, com o novo valor de torque que o manual trouxe para certo parafuso, com o novo procedimento incorporado por uma recomendação oriunda de uma investigação de acidente aeronáutico, enfim, estará com certeza executando seu trabalho baseado naquilo que de mais novo está vigente sobre o assunto, é o trabalho conforme, no estado da arte.

arteAlém da preocupação em executar com a técnica vigente as tarefas, empregando manuais atualizados, trabalhar conforme ainda abrange tudo aquilo, relacionado com a atividade de manutenção aeronáutica, que possua legislação, regulamento, manual ou, quando sem previsão normativa, a adoção de uma prática recorrente, eficaz e comprovadamente segura, como exemplo:

– Ter um ambiente adequado de trabalho – o ambiente deve ser limpo, arejado, iluminado, ter local para consulta dos manuais (biblioteca técnica para os impressos e/ou terminal para acesso on-line),terem os equipamentos necessários (talhas, compressores, bancadas, etc.). RBAC 145:

145.103 Requisitos para instalações e recursos

(a) Cada organização de manutenção certificada deve prover: (1) instalações que abriguem recursos, equipamentos, ferramentas, materiais, dados técnicos e pessoal compatível com suas certificações, especificações operativas e, quando aplicável, lista de capacidades;

– Possuir pessoal qualificado e treinado para as intervenções requeridas–o mecânico deve ter o perfil adequado para a atividade, senso de responsabilidade, treinamento e reciclagem, capacidade de leitura dos manuais no idioma apresentado, etc. RBAC 145:

145.155 Requisitos do pessoal de inspeção

(c)-I O pessoal de inspeção deve ser capaz de ler e entender o(s) idioma(s) em que são apresentados os dados técnicos e as instruções para aeronavegabilidade continuada necessárias para a realização dos serviços constantes em suas especificações operativas

– Possuir as ferramentas básicas e especiais conforme a homologação da oficina – RBAC 145:

145.109 Requisitos de equipamentos, ferramentas, materiais e dados técnicos

(a) Cada organização de manutenção certificada deve ter equipamentos, ferramentas e materiais necessários para a execução da manutenção, manutenção preventiva ou alteração em conformidade com seu certificado, especificações operativas e com o RBAC 43,

– Manter e certificar-se das validades de aferições e calibrações das ferramentas.

– Cultuar uma Doutrina de Manutenção Aeronáutica – doutrina como conjunto de regras que regem as condutas dentro da oficina, com consciência de todos e fiscalizações mutuas e sem “melindres”. Ações, atitudes e condutas que não foram, necessariamente, abordadas nas legislações,mas que foram adquiridas pela expertise, pelos ensinamentos dos erros do passado e trazidas pelas boas práticas de manutenção, sabendo o porquê e a importância de cada conduta. Por exemplo: ter como doutrina que os mecânicos não devem fazer uso de anéis, pulseiras e adornos que podem,numa intervenção no motor da aeronave, se desprender e atingir partes críticas do motor resultando em acidente, incidente ou uma intervenção fora de fase no motor.

fodOu ainda, a doutrina de se manter limpo o hangar de manutenção e o pátio, eventualmente pelo próprio auxiliar de mecânico que deverá varrê-lo consciente que aquela missão tem seu porque e sua importância evitando que algum FOD, atinja um pneu, por exemplo.

Livre de improvisos, achismos e “jeitinhos”, assegurada uma doutrina deve consolidada em um Regulamento de Conduta, numa Nota de Instrução, num Procedimento Operacional Padrão, seja lá qual for o nome do documento normativo, qualquer novo integrante da Oficina de Manutenção quando chegar novo na Organização, do auxiliar mais inexperiente ao inspetor mais antigo, do controlador técnico ao Gerente Responsável, do soldado ao major, todos que chegam terão a cartilha que os levará a trabalhar conforme.

Como base para criação de doutrinas e boas práticas de gestão para a Manutenção Aeronáutica um ponto de partida interessante, que leva ao aprendizado com velhos erros, é o conhecimento das Dirty Dozen.

The Dirty Dozen é um estudo desenvolvido por Gordon Dupont, em 1993, trabalhando na Transport Canada, que passou a fazer parte de programa de formação elementar do desempenho humano na Manutenção Aeronáutica, o conceito abriu discussões sobre o erro humano nas empresas, organizações e locais de trabalho, não só na manutenção aeronáutica, mas também para os pilotos, trabalhadores de rampa, controladores de tráfego aéreo e tripulação de cabine.

Os aspectos que Gordon Dupont expõe complementam a idéia de trabalhar conforme. Expomos que trabalhar conforme irá auxiliar na segurança de voo, sem dúvidas, e bastaria somente o cumprimento das regras, porém ele enfatiza o descumprimento inconsciente da regra, resultado de uma das Dirty Dozen, que levará aos erros, por exemplo: o trabalho foi conforme – ambiente adequado, manual atualizado, ferramenta apropriada e aferida, porém, por causas diversas, o técnico trabalha além da sua jornada de trabalho, resultando em fadiga, que, consequentemente, resulta em falta de atenção. Nesse caso não se observa os pontos negativos que se iniciaram quando se decidiu prolongar a jornada e sim os pontos positivos: aeronave ficará pronta no prazo, ou antes, terminará a pressão da chefia, serei elogiado pela dedicação, iremos para casa hoje e não precisaremos voltar amanhã, por exemplo.

dupobtConcluímos então que trabalhar conforme em Manutenção Aeronáutica poderá ter dois contextos, com recursos humanos e metas diferentes: técnico: afetando, sobretudo, o mecânico executor, o suprimentista, o controlador técnico, o inspetor e demais envolvidos que atuaram dentro das normas e doutrinas de manutenção vigentes; administrativo: trabalhando nos bastidores, como por exemplo, em processos de compra de componentes.

Administrativamente ainda os gestores têm papel muito importante no acompanhamento, supervisão e implantação de política organizacional que monitore, evite e/ou mitigue o aparecimento de alguns das Dirty Dozen, contribuindo ativamente com a segurança operacional, conforme apresentado no quadro: 1. Falta de Comunicação; 2. Complacência; 3. Falta de Conhecimento; 4. Distração; 5. Falta de Trabalho em Equipe; 6. Fadiga; 7. Falta de Recursos; 8. Pressão; 9. Falta de Assertividade; 10. Stress; 11. Falta de Consciência; e12. Normas (não escritas, fruto de práticas corriqueira, porém não- conforme, “a forma de como fazemos as coisas por aqui”, improviso perigoso).

A Manutenção Aeronáutica no GRPAe

Para manter conforme os seus helicópteros modelo AS 350 “Esquilo” o Grupamento de Radiopatrulha Aérea da Polícia Militar do Estado de São Paulo – GRPAe, através de processo licitatório, mantém contrato de manutenção de célula com a empresa Helibras e de manutenção de motor com empresa Turbomeca.

Todavia, estrategicamente, possui no seu organograma uma Divisão de Manutenção Aeronáutica, onde funciona a Oficina de Manutenção Aeronáutica do GRPAe. Certificada pela Agência Nacional de Aviação Civil- Anac e regida pelo Regulamento Brasileiro de Aviação Civil- RBAC 145, a Oficina do GRPAe está habilitada para executar as inspeções requeridas pelo fabricante da aeronave, realizando comumente inspeções de 150 horas, onde a aeronave permanece uma semana baixada. Diariamente trabalha-se em eventuais panes, instalações de acessórios e componentes, pré, entre e pós-voo e serviços de pátio (abastecimento, balizamento, liberação de aeronaves para missões, etc.).

Para a Organização de Segurança Publica é muitíssimo importante ter seu pessoal de manutenção aeronáutica. A segurança de voo é aumentada pela atuação diária na aeronave do técnico qualificado, o emprego em missões policiais é possível por se tratar de um policia militar, ganha em autonomia nas inspeções no caso de uma eventual greve de empresa contratada, por exemplo, e possibilita a atuação em campo em meio às ambientes diversos de missão.

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Autor: Ronaldo Barreto de Oliveira é Capitão da Polícia Militar de São Paulo, Comandante de Aeronave e Instrutor de Voo do Grupamento de Radiopatrulha Aérea – “João Negrão” e atua na Divisão de Manutenção Aeronáutica da unidade.