Ex-chefe do Cenipa defende que FAB pare de investigar acidentes civis
26 de junho de 2012 11min de leitura
26 de junho de 2012 11min de leitura
O brigadeiro Jorge Kersul Filho, que até 2010 chefiava todas as investigações de acidentes aéreos no Brasil, contou pela primeira vez, em detalhes, o que viu e o que levou em conta durante as tragédias da Gol, da TAM e da Air France que, em um curto período – de 2006 a 2009 – causaram juntas 558 mortes.
Em sua primeira entrevista desde que deixou o comando do Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa), em abril de 2010, Kersul defendeu, em entrevista exclusiva ao G1, que seja criada uma nova agência para apurar as tragédias aéreas. Desta vez, fora das mãos dos militares.
“A investigação de acidentes da aviação civil deve sair da Força Aérea Brasileira. Esse é um encargo que ninguém quer, não traz benefício algum, não traz nenhum ibope, não há por que ficar com a FAB. Vamos continuar fazendo bem e de forma independente enquanto estiver conosco a obrigação, doa a quem doer. A FAB deveria cuidar da própria FAB, para que sejamos realmente um país que imponha respeito”, afirmou Kersul, na entrevista concedida em sua casa, em Brasília.
Pela proposta, seria criada uma agência destinada à prevenção e à investigação de acidentes da aviação comercial civil empregando ex-militares que já atuaram no Cenipa e que poderiam, no início, treinar pessoal qualificado para continuar o trabalho. “Eu não acho que os militares devam continuar com essa responsabilidade. Quando eu estava no Cenipa, fizemos uma proposta para criar esse órgão e a tarefa sair do comando da FAB. A ideia foi para o Ministério da Defesa e deve estar lá”, diz o oficial.
Para ele, a diferença hierárquica atrapalha o relacionamento entre os órgãos que atuam hoje no sistema aéreo e é o principal motivo que explicaria a investigação de tragédias da aviação civil deixar de ser atribuição do Cenipa.
“Até a década passada, tudo relacionado à aviação no país estava com o Ministério da Aeronáutica. O Estado brasileiro tirou da gaveta uma agência para a aviação civil, a Anac. A Infraero (empresa que administra os aeroportos) também saiu debaixo da Aeronáutica. Foi criada a Secretaria de Aviação, com status de ministério, enquanto que o Cenipa é um órgão dentro do Comando da FAB que está subordinado ao Ministério da Defesa. Há uma diferença de estrutura que gera um conflito”, aponta.
Histórias
Kersul passou para a reserva em abril, a seu pedido. Deixou a Aeronáutica levando na memória as dificuldades enfrentadas para a retirada da mata dos corpos das 154 vítimas de um Boeing da Gol, que caiu em Mato Grosso em 2006, as buscas pelas caixas-pretas de um Airbus da TAM, que explodiu ao sair da pista em Congonhas (SP), deixando 176 mortos em 2007, e a tarefa de localizar outro Airbus, agora da Air France, que desapareceu no mar em 2009, com 228 pessoas a bordo.
“Receber a notícia de que houve um acidente de grandes proporções é realmente uma sensação muito desagradável, o pior pesadelo de quem trabalha no Cenipa. Você tem que manter a calma, respirar fundo e raciocinar rápido, fazer o que deve ser feito”, diz ele.
O oficial conta que “é perseguido” por familiares de vítimas do voo Gol 1907, que o acusam do suposto sumiço de pertences na floresta e de ter entregue partes do Legacy para a empresa após perícia. Ele diz que cumpriu a legislação e a devolução ocorreu só três anos após a colisão, porque ninguém queria os equipamentos. “Os dados foram preservados”, afirma o brigadeiro.
“Quando ocorre um acidente, quem vai ser punido e criticado é o responsável pelo órgão investigador e o responsável pelo resgate, que passou 50 dias na mata procurando todos os corpos? E eu me pergunto: valeu? No fim das contas, eu ainda diria que valeu à pena (o trabalho)”.
Kersul diz que a decisão de deixar a Aeronáutica ocorreu após uma avaliação da carreira, levando em conta a família e o que já havia feito como militar.
“Fiz um levantamento da minha vida e decidi que deveria procurar outros rumos. Levantei fatores que poderiam contribuir para que eu continuasse ou não (na FAB), como idade, perspectiva de vida, vontades, a aviação, que eu sempre gostei. Completei 40 anos de casa, vejo isso com naturalidade. Não briguei com ninguém e não estou saindo da FAB, apenas deixando o serviço ativo”, explica.
Acusações na tragédia da Gol
Dos três acidentes, o da Gol é o que mais lhe marcou, principalmente porque um familiar acusou a Aeronáutica do sumiço do celular de uma vítima. Segundo Kersul, o parente afirmou a ele que o aparelho chegou às mãos de uma pessoa que conserta celulares, no Rio de Janeiro, dois dias após a tragédia. Pela versão do familiar, o celular teria sido desviado por um militar da Aeronáutica.
“Comandei as buscas pelos corpos na mata até que o último fosse encontrado: o senhor Marcelo Paixão, que estava na poltrona 17C. Já tínhamos retirados todos e só faltava ele. Insistia com o IML que ele devia estar lá, mas ainda não havia sido identificado. Mesmo tendo sido assessorado de que não era obrigação nossa, por ordem minha, até que achássemos o último corpo, passaríamos a recolher objetos que encontrássemos na nossa frente. Mas essa não era nossa obrigação”, relembra.
Dos cerca de 7 mil kg que estavam a bordo, foram retirados da mata 1.650 kg. “A FAB foi lá resgatar corpos. Carga é responsabilidade do operador. Infelizmente, uma parte dos familiares nos cobra isso e não se lembra de que fizemos algo em favor deles. Quem conhece a Amazônia sabe as dificuldades. É difícil você passar o que passou e ver o trabalho jogado no lixo”, diz.
Durante a CPI do Apagão Aéreo, em 2007, Kersul chorou ao ser acusado de ter desviado pertences das vítimas. Diz ter pedido à inteligência da FAB para investigar o caso, mas que, como os parentes não passaram informações, a apuração não pôde ser levada adiante.
“Como você pode fazer uma investigação se não tem nenhuma coisa palpável para começar. Hoje eu sou cobrado por não ter aberto nenhum processo administrativo. Ficamos de mãos atadas (na época)”.
Para o brigadeiro, nenhum militar “foi para lá roubar ou pilhar os corpos”. “Defenderei sempre que nenhum de nós teve participação nisso. Ninguém saiu da mata até 10 dias após a queda. É impossível esse celular estar no Rio dois dias depois. Esse celular é um mistério para mim. Será que esse celular embarcou neste avião?”, questiona.
Fatos sem explicação
Na CPI, outro parente perguntou a ele por que faltava um cartão de crédito na carteira de uma vítima. “Eu não soube explicar isso a ela, da mesma forma que eu não consigo explicar como, em uma árvore de 40 metros de altura, tinha só uma calça pendurada com um celular funcionando dentro. Eu também não consigo explicar como dois aviões conseguem se encontrar a 11 mil metros numa aerovia com pouco movimento”, desabafa.
“Se tivéssemos que imaginar uma colisão em voo, nunca seria em cima da Amazônia, em uma a aerovia de tráfego normal, com dois aviões novos, com poucas horas de voo, e muito próximas da perfeição em termos de construção”, acrescenta.
Então, quem errou? A culpa é dos pilotos do Legacy, que desligaram o transponder (localizador) e não evitaram a colisão? “Não existe um ator responsável, nem quem e nem o que errou. Na investigação, trabalhamos com fatores contribuintes. Há uma sequência de eventos que levam ao acidente porque não houve nenhuma barreira forte o suficiente para impedir que esse ela seja interrompida”, diz.
Para Kersul, a tripulação do Legacy não colocou propositadamente o transponder em “stand-by” (posição de aguardo). “Em algum momento o transponder foi para essa posição, colocado propositalmente ou involuntariamente e voltou a operar normalmente imediatamente logo depois da colisão”. Ele lembra uma frase da própria tripulação do Legacy ao religar o transponder logo após a choque com o Boeing da Gol: “É exigir demais do transponder que ele funcione se está em posição de espera”.
O brigadeiro afirma que os americanos poderiam ver na tela, em mais de um lugar, que o transponder estava desligado. “E isso não foi observado por eles”.
O oficial também pontua uma falha no controle de tráfego aéreo, que “deixou de observar no radar que havia deixado de receber a informação do transponder” e que poderia ter acionado os pilotos para verificar se havia alguma falha no instrumento.
Colisão em Congonhas
O brigadeiro recorda que o Cenipa previu que um acidente poderia ocorrer em Congonhas meses antes da tragédia do TAM JJ 3054.
Após receber vários relatos de aeronaves que quase saíram da pista, ele convocou uma reunião com empresas aéreas e órgãos envolvidos na operação do aeroporto, em Brasília, na semana entre o Natal e o Ano Novo de 2006, após o acidente da Gol.
“Alertamos na reunião que um tínhamos um cenário de que um acidente iria ocorrer em Congonhas e restringimos as operações”, lembra.
A pista passou por reformas, foi liberada, mas continuava escorregadia, com formação de poças de água e risco de derrapagem, conforme relatos de informe de risco realizados por pilotos na época.
“Quando ocorreu o acidente, fomos duplamente frustrados. Acreditávamos que tínhamos conseguido evitar um acidente que tivesse envolvimento da pista, mas mesmo assim o acidente ocorreu após a reforma, sem interferência direta da pista”, diz. “Imagina como isso foi triste para todos nós”.
Segundo Kersul, apesar de um dos manetes ter sido mantido na posição de aceleração durante o pouso (como ficou registrado nas caixas-pretas), a pista pode ter contribuído como fator psicológico e também para “o agravamento” do caso.
“Congonhas é um verdadeiro porta-aviões dentro da cidade. Outros acidentes do mesmo tipo não tiveram um final tão trágico porque a aeronave parou na lama ou em um campo. Mas em todas as simulações feitas, se fossem mantidos todos os fatores, aquela aeronave iria sair da pista em qualquer aeroporto”.
Julgamentos
Kersul lembra que, quando o Airbus da Air France desapareceu no Oceano Atlântico, a Aeronáutica iniciou os trabalhos de busca e localização até que o acidente, que deixou 228 mortos em 1º de junho de 2009, fosse confirmado. Apesar de críticas dos familiares de que a atuação brasileira foi coadjuvante no caso, ele afirma que o Brasil cumpriu a legislação internacional que determina que, se a aeronave se acidentou em águas internacionais, “a responsabilidade de investigar o caso cabe ao operador, ao fabricante e ao país da bandeira da aeronave. Nesse caso, todos indicavam a França”.
“O Brasil não teve o papel de coadjuvante ou de ator principal, mas teve a participação que lhe cabia, iniciando as apurações no Recife, coletando as informações iniciais para a França. Estamos fazendo o que é nossa parte pela legislação internacional. O responsável por fazer essa investigação é o estado francês”, afirma.
Após todas as tragédias que acompanhou, ele defende que seja regulamentada uma lei nacional para que as informações obtidas pela apuração não sejam usadas nos tribunais com fins criminais ou de responsabilização civil, como a busca por indenizações. Nesta quarta-feira (27), um evento com familiares de vítimas de acidentes aéreos, investigadores do Cenipa, juízes e Ministério Público debaterá em São Paulo um projeto de lei que trata da questão.
“A investigação do Cenipa é para prevenção. Não concordamos que nossos relatórios sejam usados para fins jurídicos. É um problema difícil, que as pessoas não entendem, mas o prejuízo é enorme, pois os envolvidos deixam de colaborar com medo de que, o que nos falam, seja usado contra eles”, diz.
“Ninguém quer que o relatório do Cenipa seja secreto. Só pedimos que ele não seja usado em julgamentos. Nossa investigação é imparcial com o único objetivo de evitar mais acidentes. A investigação da polícia é que tem que achar responsabilidades e culpados e deve ser usada nos tribunais, e não a nossa”, rebate.
Fonte: por Tahiane Stochero Do G1, em Brasília.
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