Época Negócios – Uma antiga rixa entre dois Silva, iniciada ainda nos bancos escolares, pode, se não explicar, ao menos apimentar a histórica rivalidade entre duas grandes companhias brasileiras.

Diz a lenda que Ozires Silva e Nivaldo Alves da Silva já se estranhavam nos corredores do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) no início dos anos 60, quando ainda nem sonhavam em ser, respectivamente, o primeiro presidente da Embraer e o primeiro presidente da Helibras.

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Coincidência ou não, o fato é que ao longo dos anos as desavenças entre as duas companhias só aumentaram. Não são poucos os relatos de rasteiras mútuas, que envolvem desde tentativas de atrapalhar o andamento de contratos já fechados até pressões para que a Força Aérea Brasileira (FAB) cortasse verbas do concorrente. Dentro da Helibras, por exemplo, muita gente enxerga o dedo da Embraer no cancelamento de um dos xodós da companhia, o projeto Heliat, que deveria desembocar no primeiro helicóptero nacional, ainda na década de 90.

O tempo passou, as empresas cresceram, ficaram menos dependentes de pedidos estatais, miraram áreas diferentes e pareciam ter deixado as diferenças de lado. Os atuais CEOs, Frederico Curado e Eduardo Marson, têm bom relacionamento e existe, hoje, até uma parceria entre as duas. A Atech, do grupo Embraer, por exemplo, é fornecedora de sistemas táticos para aparelhos da Helibras.

A trégua, no entanto, pode acabar. No fim de janeiro, a Embraer anunciou a intenção de criar uma joint venture com a italiana AgustaWestland – uma das cinco grandes do mercado mundial – que deverá desembocar na construção de uma segunda fábrica de helicópteros no Brasil. A única existente hoje é justamente a da Helibras, em parceria com os franceses da Eurocopter. A guerra fria entre as empresas promete esquentar.


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EC725  – A aeronave, usada para transporte pesado, é a principal responsável pelo crescimento recente da Helibras, após a venda de 50 unidades ao governo.

 

 


No Radar

A manobra de Embraer e Agusta faz todo o sentido. Enquanto o mercado mundial de helicópteros patina, o Brasil aparece como uma das poucas alternativas de investimento para as fabricantes internacionais. Entre 2012 e 2016 devem ser comercializados no mundo cerca de 5 mil aparelhos. É mais do que os 4,3 mil vendidos entre 2007 e 2011 – auge da turbulência econômica –, mas ainda longe dos mais de 7 mil modelos negociados em períodos anteriores.

A América Latina, com o Brasil à frente, deve ser a região com maior aumento de participação nessas vendas. A expectativa é que, entre novos aparelhos e reposições, o país receba cerca de 600 helicópteros nos próximos quatro anos. O Brasil tem hoje a quinta maior frota global, que deverá ultrapassar a marca de 2 mil aparelhos ainda este ano. Somando aquisições, manutenção, peças, pilotos e serviços, o segmento movimenta R$ 2 bilhões por ano no país.

Esse valor tende a aumentar a taxas superiores a 20% nos próximos anos. Isso porque a aviação comercial atende a cerca de 200 cidades, enquanto há outros 4 mil destinos com demanda por transporte aéreo, segundo estimativas da Associação Brasileira de Aviação Geral. “Conforme a economia cresce, aumenta o número de helicópteros nesses locais”, diz Rodrigo Duarte, presidente da Associação Brasileira de Pilotos de Helicóptero.

Ter um helicóptero é um investimento de gente grande. Um modelo executivo de médio porte está na faixa de R$ 3 milhões. Somando salário do piloto, seguro e hangar, o gasto mínimo por mês é de R$ 30 mil. Com manutenção, equipamento e combustíveis, o valor dobra. “Isso sem levar em conta os meses em que o aparelho pode ficar parado enquanto espera alguma peça do exterior”, diz Jorge Bittar, diretor da Associação Brasileira de Táxis Aéreos.


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A129  – Mangusta  O modelo militar pode ser uma opção para substituir os problemáticos helicópteros russos usados pela Força Aérea Brasileira na Amazônia.

 

 


É daí que vem o interesse externo: ter uma fábrica no país reduz todos esses números – e resulta num mercado maior. Fabricar por aqui também permite tentar enquadrar os aparelhos nas regras do Finame, programa de financiamento do BNDES com juros menores e com prazo de pagamento maior. Hoje o único helicóptero dentro do programa é o AS350 Esquilo, produzido pela Helibras – o campeão de vendas da empresa.

A dúvida é se o mercado nacional terá demanda para dois fabricantes. “Fora os Estados Unidos, donos de metade da frota mundial, nenhum outro país tem mais de uma fábrica de helicópteros”, diz Jairo Cândido, diretor do Departamento da Indústria de Defesa da Fiesp.

Na Embraer, é claro, existe a percepção de que há espaço para a coexistência – até porque a ideia é usar a fábrica brasileira como base de exportação. Já na Helibras, essa certeza não é tão grande. Paira na cúpula da empresa certa insatisfação com o apoio informal dado pelo governo à formação do consórcio concorrente. “Existe no Planalto uma mentalidade de estabelecer a concorrência a qualquer custo, mesmo no momento em que a principal empresa está se consolidando”, diz um dos diretores da empresa.

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Cardápio ampliado

Lobbies à parte, a entrada da Embraer no segmento de helicópteros representa mais um passo em sua estratégia de diversificação. Há dois anos, a empresa decidiu não avançar sobre o mercado de aviões comerciais de grande porte, dominado por Boeing e Airbus.

Para não ficar restrita aos jatos de médio e pequeno porte, ampliou as atividades para áreas como drones não tripulados, radares, satélites, sistemas eletrônicos… E, agora, helicópteros. “É uma tendência mundial”, diz Marcos José Barbieri Ferreira, professor da Unicamp especializado na área de Defesa. “As fabricantes de aeronaves estão se tornando conglomerados aeroespaciais, atrás de fontes de receita.”

Fabricar helicópteros deveria ser algo simples para quem fez história produzindo veículos mais complexos. Não é. Há uma série de diferenças nos dois processos, algo que não será assimilado da noite para o dia. Por outro lado, lembra o consultor aeronáutico Fernando Arbache, “a Embraer já possui muita experiência com componentes, aerodinâmica e túnel de vento. Ela não vai começar do zero”. Uma das alternativas da empresa é repetir, com os helicópteros, o que vem sendo feito no KC390 (projeto de avião de transporte de grande porte): agrupar componentes e integrar sistemas, deixando, num primeiro momento, a fabricação de itens como radares e rádios para um parceiro internacional. Com o tempo, a Embraer também assumiria a produção destas partes. “Temos décadas de experiência em absorver tecnologia aeronáutica”, afirma um executivo ligado à companhia.


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Agusta Westland AW109  É a principal aposta da parceria entre Embraer e Agusta para o mercado civil e para equipar as polícias militares.

 

 


A dificuldade da Embraer é mais política e institucional do que técnica. Poucos dias após o anúncio do acordo com a AgustaWestland, a companhia italiana viu-se no centro de um megaescândalo de corrupção. Pertencente ao grupo Finmeccanica – segundo maior conglomerado industrial do país, atrás apenas da Fiat –, a empresa foi acusada de criar um esquema de suborno para vencer uma concorrência de US$ 670 milhões na Índia. O controlador da empresa foi parar na cadeia e o presidente executivo colocado em prisão domiciliar.

O imbróglio virou motivo de constrangimento na empresa brasileira. A Embraer espera o desenrolar do caso antes de anunciar qualquer avanço na fusão com os italianos. “Tudo tem de ser esclarecido para que essa parceria possa sair do papel”, diz o executivo. Enquanto aguarda o desfecho da novela italiana, a empresa segue estudando o mercado. Neste momento, avalia quais modelos poderiam ser produzido por aqui. No segmento civil, há o AW109, mais leve, para transporte executivo e por forças policiais, e o AW139, mais pesado, voltado para o mercado de óleo e gás, menina dos olhos dos fabricantes por conta do pré-sal.

Na área militar, uma das possibilidades é realizar o sonho dos comandantes da Aeronáutica: produzir um helicóptero nacional de ataque. Hoje são usados os modelos russos Mil Mi35, comprados em 2008 e cuja experiência de uso não tem sido boa. Softwares ineficientes, sistema elétrico incompatível, manuais em cirílico, manutenção complicada, tudo isso faz com que a frota passe mais tempo na oficina do que no céu de Porto Velho, onde estão baseados para ações na Amazônia. A partir da parceria com os italianos, a Embraer acredita ser possível trocar os aviões russos pelo A129 Mangusta, uma versão modesta do modelo americano Apache, que pode se enquadrar no orçamento da FAB se for fabricado no país.

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Estratégia de defesa

“Quem entrar no mercado vai ter de passar por todo o processo de aprendizado que já superamos”, diz Marson, CEO da Helibras. Foram 35 anos de uma história cheia de altos e baixos. Nos difíceis tempos de crise econômica dos anos 80, a empresa chegou a produzir apenas um aparelho por ano. Quase fechou as portas. Hoje, a capacidade anual, de 36 helicópteros Esquilo, mal atende à demanda. Em seu cardápio estão os modelos Super Puma e Pantera, para o segmento militar, e o modelo leve Esquilo, para a aviação executiva. O grande salto aconteceu em 2008, com a assinatura de um contrato de R$ 5,2 bilhões para o fornecimento de 50 helicópteros EC725 – capazes de transportar 11 toneladas e até 30 passageiros – para as Forças Armadas e a Presidência da República.

O contrato gerou uma revolução na Helibras. A empresa investiu R$ 420 milhões na ampliação da fábrica, que mais do que dobrou de tamanho – afinal, metade dos componentes tem de ser feita no Brasil até 2017. Quando os novos prédios foram inaugurados, no fim de 2012, os funcionários se dividiram. Quem foi trabalhar nas instalações modernas, aprovou. Difícil foi consolar os que ficaram nos prédios antigos. Não demorou muito para que os edifícios fossem apelidados de Dubai e Mumbai, respectivamente. Agora, a empresa está reformando Mumbai.


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Esquilo –  Trata-se de um campeão de vendas da Helibras. Desde que o modelo começou a ser fabricado no Brasil, nos anos 80, foram vendidas 500 unidades.

 

 


O salto, entretanto, não ficou limitado à parte física. A empresa recebeu da Eurocopter a capacitação máxima em engenharia, igualando-a às principais unidades do grupo na França, Alemanha e Espanha. O número de engenheiros saltou de nove para 70 e o de funcionários mais que triplicou, saindo de 250 para 870 – até o fim do ano, deve bater na casa dos mil.

O faturamento não cresceu no mesmo ritmo: passou de R$ 200 milhões para cerca de R$ 300 milhões. Marson considera os números normais. “Estamos no pico de investimento e no mínimo de faturamento do contrato, como era previsto”, diz. “A partir de agora, as curvas vão se inverter.” A expectativa é chegar a R$ 1 bilhão de receita até 2020.

Essas mudanças são o suficiente para enfrentar um rival como a Embraer? Marson acredita que sim e diz ter munição extra no bolso. A de maior calibre é o projeto de um helicóptero 100% nacional para atender o mercado mundial. Segundo ele, o martelo sobre o modelo – se terá uma ou duas turbinas, leve ou médio, militar ou civil – será batido no fim do ano.

A partir de 2014, o projeto terá uma equipe exclusiva de engenheiros e ganhará espaço nas prioridades do grupo. Ainda assim, serão pelo menos dez anos até a primeira máquina sair da linha de montagem. No curto prazo, a estratégia é reforçar a rentável atividade de manutenção e ampliar o mercado para o EC725, após a entrega das 50 unidades ao governo. A empresa vê espaço para pelo menos mais 100 unidades, especialmente na versão civil, o EC225.

A ambição é usar o aparelho no mesmo segmento visado pela Embraer, o de óleo e gás, no Brasil e em países como Angola e Venezuela. Será, então, o capítulo internacional do histórico duelo.

helicoptero-07Fonte: Época Negócios. Por Marcelo Cabral (texto).

Fotos: Filipe Redondo.