EDUARDO ALEXANDRE BENI

Como começou, do ponto de vista jurídico legislativo, essa atividade no Brasil?

Bom, antes de iniciar o texto peço paciência aos leitores, porque esse assunto mais parece um seriado com muitas temporadas e ainda sem fim. Mas prometo que vou resumir e manter a proa. Esse texto descreve apenas um ponto de vista sobre o assunto.

Como tudo começou

Primeira Fase – A história da legislação aeronáutica no Brasil teve início com a criação das escolas militares de aviação em 1913 (Força Pública de São Paulo) , 1916 (Marinha) , 1919 (Exército) e, em 12 de janeiro de 1925, a Lei N° 4.911 determinou a regulamentação do serviço de Aviação Civil.

O artigo 19 desta Lei foi a célula criadora do direito aeronáutico no Brasil,  pois a Constituição Federal de 1891 abordava somente os assuntos relacionados à navegação marítima ou lacustre e direito marítimo. O texto desse artigo auxiliou na criação das primeiras regras sobre os serviços de aviação. Sabemos que o início do século XX é o grande marco do surgimento dela, porém até então era uma nobre desconhecida para o direito.

Em 22 de Julho de 1925, o Decreto N° 16.983 aprovou o regulamento para os serviços civis de navegação aérea e a partir desse ponto começa a intrincada legislação aeronáutica brasileira, cuja atribuição de organizá-la ficou a cargo da então denominada “Inspectoria Federal de Navegação” do Ministério da Viação e Obras Públicas (atual Ministério dos Transportes, Portos e Aviação civil).

Apenas uma curiosidade – Esse decreto instituiu, dentre outras regras, que a aviação civil nacional constituiria reserva da aviação militar.

Diante dessa preâmbulo, vamos tentar explicar o que aconteceu nesse interregno de 91 anos, mas de uma forma sucinta e clara.

O início do voo IFR da Aviação Civil

Com a necessidade de manter relações com organizações estrangeiras, foi criado em 22 de abril de 1931, através do Decreto N° 19.902, o Departamento de Aeronáutica Civil subordinado ao Ministério da Viação e Obras Públicas, cujo objetivo era dar organização definitiva aos serviços civis de navegação aérea por envolverem questões técnicas, jurídicas e administrativas de feição inteiramente nova, que exigiam métodos e processos de trabalho diversos dos atualmente adotados pela administração pública.

Em decorrência disso foi editado o Decreto N° 20.914, de 06 de janeiro de 1932, que regulou a execução dos serviços aeronáuticos civis e de forma pioneira, a Constituição Federal de 1934 deu à União competência privativa para legislar sobre Direito Aéreo, além de permitir a concessão da navegação aérea e dar competência aos juízes federais processar e julgar, em primeira instância, questões de navegação aérea. Foi a primeira Constituição Brasileira a tratar do assunto.

Daqui para frente, explorar a navegação aérea e legislar sobre Direito Aéreo sempre foi matéria constitucional de competência privativa da União. Importante dizer que sobre o termo “direito aéreo” somente a Constituição de 1946, a Emenda Constitucional No 1 de 1969 e a Constituição Federal de 1988 utilizaram adequadamente a expressão “direito aeronáutico”.

Neste contexto, a Constituição Federal de 1967 foi a primeira a dar competência ao Congresso Nacional dispor sobre os limites do espaço aéreo, seguindo neste caminho a Emenda Constitucional Nº 1 de 1969 e a Constituição Federal de 1988.

A criação do primeiro Código Brasileiro do Ar

Em 08 de junho de 1938, foi promulgado o primeiro Código Brasileiro do Ar, assim denominado pelo Decreto Lei N° 483 e criou o Conselho Nacional de Aeronáutica, formado por funcionário do Ministério da Viação e Obras Públicas,  um oficial superior do Exército e um oficial superior da Armada (Marinha), além de 3 membros escolhidos pelo governo. Este Conselho tinha, dentre outras, a competência para emitir estudos e diretrizes sobre navegação aérea, transporte aéreo e estudar a coordenação das atividades dos órgãos da administração pública que se relacionassem com a navegação aérea.

Até aqui íamos, sob o aspecto da construção jurídica e legislativa, muito bem, porém, nesse momento começa a primeira mudança quanto a atribuição e é a partir daqui que toda legislação construída passa a ser alterada substancialmente.

Inicia-se um movimento para se” dividir” juridicamente a aviação em civil e militar, muito embora, do ponto de vista da finalidade, fosse assim desde o início. Deixou-se de lado a definição jurídica de Público e Privado e passou a ser adotada a definição de Civil e Militar.

A criação do Ministério da Aeronáutica

Segunda Fase – Em 20 de janeiro de 1941, através do Decreto-Lei No 2.961, esta estrutura estabelecida foi radicalmente modificada com a criação do Ministério da Aeronáutica, passando ao novo Ministério as competências atribuídas ao Exército, Marinha e Departamento de Aeronáutica Civil do Ministério da Viação e Obras Públicas. A Arma da Aeronáutica do Exército, o Corpo de Aviação da Marinha e o Conselho Nacional de Aeronáutica são extintos. O Ministério da Viação e Obras Públicas não tem mais a atribuição de administrar e organizar a Aviação Civil.

Com a instalação dos principais órgãos previstos na Organização Geral do Ministério da Aeronáutica, aprovada pelo Decreto Lei Nº 3.730 de 18 de outubro de 1941, cria-se a Diretoria de Aeronáutica Civil (regulamentada em 15 de Janeiro de 1942 pelo Decreto No 8.535) e, consequentemente, o Departamento de Aeronáutica Civil é extinto pelo  Decreto No 8.561 de 17 de janeiro de 1942.

Nesse período em que a atribuição de organizar e administrar a Aviação Civil pertencia ao Ministério da Aeronáutica o nome desse setor foi mudado de Diretoria de Aeronáutica Civil para, novamente, Departamento de Aeronáutica Civil (1967) e por fim Departamento de Aviação Civil (1969). Para quem voa há mais tempo, lembrará que essa era uma das perguntas das antigas provas do DAC.

A cisão jurídica – cria-se um novo modelo

Em 18 de novembro de 1966, o Decreto-Lei Nº 32 instituiu novo Código Brasileiro do Ar e, como todas as normas anteriores, manteve a classificação das aeronaves em públicas e privadas, porém, como base no Ato Institucional Nº 4, de 07 de dezembro de 1966, o Decreto Lei Nº 234, de 28 de Fevereiro de 1967 alterou substancialmente a classificação de aeronaves para civis e militares.

Considerou militares somente as aeronaves integrantes das Forças Armadas e aeronaves civis as aeronaves públicas e as aeronaves privadas, colocando as aeronaves militares fora da égide do Código. Seguiu-se aqui a regra criada pelo Código Brasileiro do Ar de 1966, quando passou a classificar os aeródromos em civis e militares.

Aqui, portanto, inicia-se uma nova fase da aviação civil e esta classificação de aeronaves e aeródromos resultou em um problema que tem seus reflexos até hoje, pois não considerou, por exemplo, as atividades de polícia, bombeiro e fazendária, como atividades de Estado.

Ora, então a aeronave militar não é pública? Pelo Código não. O que fez foi criar um classificação desconhecida do direito brasileiro, pois, até o direito comum é tratado como Público e Privado. (Leia o Art. 3º da Convenção de Chicago e entenda que ela foi elaborada 1944 – final da Segunda Guerra Mundial).

Além disso, criou-se uma tremenda confusão, pois manteve os serviços aéreos em públicos e privados, que são aqueles realizados por pessoas jurídicas de direito privado que realizam serviços aéreos públicos mediante concessão, permissão ou autorização do Estado, ou que realizam serviços aéreos privados. Bom, e os serviços realizados pelo Estado – Pessoa Jurídica de Direito Público, como polícia e bombeiro, o que são? Pelo Código não foram considerados, pois nada fala sobre essa atividade.

Para tentar explicar melhor esse assunto, do ponto de vista jurídico, o conceito público e privado adotado pelo direito é amplo e unívoco, enquanto que o conceito de civil e militar é restrito e ambíguo, podendo gerar ponto de inflexão, ou seja, se a Polícia Militar pretender adquirir e operar uma aeronave, ela será civil pública, embora a organização e seus componentes sejam constitucionalmente militares. Se a aeronave fosse conceituada como pública, a destinação poderia ser civil ou militar, sem qualquer ambiguidade. Simples assim.

O Brasil passou por um fim números de decretos-lei, decretos e leis que trataram do assunto, até que se pudesse ter hoje o Código Brasileiro de Aeronáutica, instituído pela Lei N° 7.565 de 1986 e que trata exclusivamente da Aviação Civil, excluindo de sua atribuição a Aviação Militar, e manteve a classificação das aeronaves e dos aeródromos em civis e militares, seguindo o mesmo modelo adotado a partir de 1966.

A criação do Ministério da Defesa

Terceira Fase – Nesta evolução, em 1999, por força da Lei Complementar N° 97, foi criado o Ministério da Defesa e os Ministérios da Marinha, do Exército e da Aeronáutica foram transformados em Comandos Militares.

Por ocasião da criação do Ministério da Defesa, houve a determinação legal (Art. 21) para a criação da Agência Nacional de Aviação Civil – ANAC, assim, somente em 2005 foi extinto o antigo Departamento de Aviação Civil e criada a ANAC, órgão regulador e fiscalizador da Aviação Civil e da infraestrutura aeronáutica e aeroportuária, ainda vinculado ao Ministério da Defesa.

A criação da ANAC

Quarta  Fase – Neste contexto, a ANAC foi criada pela Lei Nº 11.182, de 27 de setembro de 2005 e regulamentada pelo Decreto Nº 5.731, de 20 de março de 2006, entidade integrante da Administração Pública Federal indireta, submetida a regime autárquico especial, vinculada ao Ministério da Defesa, cuja atribuição principal é regular e fiscalizar as atividades de Aviação Civil e de infraestrutura aeronáutica e aeroportuária.

Instalada a ANAC, o Poder Executivo extinguiu o Departamento de Aviação Civil – DAC e suas atribuições foram  transferidas para a ANAC. Os militares que trabalhavam no DAC permaneceram com suas atividades na ANAC, até que, gradativamente, retornaram aos seus Comandos Militares. Aqui ocorre outra cisão no setor, qual seja, perdeu-se o conhecimento adquirido ao longo de décadas, atribuídos a profissionais altamente qualificados. Além disso criou-se uma segunda autoridade – a Autoridade de Aviação Civil. A Autoridade Aeronáutica estabelecida pelo Código Brasileiro de Aeronáutica de 1986 ficou limitada somente aos assuntos de atribuição do Comando da Aeronáutica.

A criação da Secretaria de Aviação Civil

Quinta  Fase – A Lei Nº 12.462, de 4 de Agosto de 2011 criou a Secretaria de Aviação Civil da Presidência da República e foram transferidas as competências referentes à aviação civil do Ministério da Defesa a essa Secretaria. Assim, o setor de aviação civil e das infraestruturas aeroportuária e aeronáutica civil passaram a ser de sua competência. Agora a ANAC está sob a égide dessa Secretaria com status ministerial.

E Agora?

Pensaram que tinha acabado? Não, não acabou!

Vamos agora, quanto à atribuição, para a Sexta Fase da nossa Aviação Civil. A Medida Provisória 726, de 12 de maio de 2016 recolocou a Aviação Civil no Ministério onde tudo começou e transformou o Ministério dos Transportes em Ministério dos Transportes, Portos e Aviação Civil, mas manteve toda a estrutura atual existente.

Bom, depois de todo esse breve resumo histórico jurídico legislativo sobre o assunto, fica difícil saber o que vem por ai, ainda mais com o que está sendo elaborado pela Comissão de Especialistas de Reforma do Código Brasileiro de Aeronáutica do Senado Federal. Será que teremos uma legislação aeronáutica que atenda aos interesses do Estado, das empresas, dos aeronautas, dos aeroviários, etc e principalmente dos cidadãos que usam ou necessitam desses serviços?

Olhando para o passado, vivenciando o presente e entendendo toda essa breve cronologia jurídico legislativa, de atribuições e competências, podemos entender quanto se perdeu nessas mudanças e como o futuro é nebuloso. Muitas conquistas aconteceram, principalmente sobre tecnologia e segurança, mas do ponto de vista legislativo e jurídico perdemos muito o foco e viajamos sem plano de voo.

Não fossem os avanços tecnológicos inseridos na aviação e dos profissionais altamente qualificados do setor, posso arriscar em dizer que esse meio de transporte globalizado não subsistira no Brasil, pois do ponto de vista jurídico legislativo, a Aviação Civil realiza um verdadeiro voo IFR, em condições IMC, e sem instrumentos.

Por curiosidade, procure ler e conhecer a legislação sobre a Aviação Civil. Encontrará uma infinidade de regulamentos, resoluções, portarias, instruções, Leis, Decretos, e posso garantir que terá muita dificuldade de entendimento.

Nessa pesquisa encontrará até regulamentos emitidos pela ANAC em língua inglesa, sem tradução para o português, e com aplicação no Brasil e quando chegar no Regulamento que trata Licenças, Habilitações e Certificações de Pilotos (RBAC 61) verá que está na emenda nº 6. Isso mesmo, de 2012 para cá foram seis alterações e a última apresentou mudanças sensíveis.

Além da tecnologia, da qualificação dos profissionais do setor, etc., é necessária a inquestionável segurança jurídica para o desenvolvimento sustentável dessa nossa querida aviação.

Vamos em frente e bons voos!

Depois dessa longa leitura apresento o resumo prometido:

CRONOLOGIA


Observação: Inclui nesse texto as normas legais para que aqueles mais curiosos queiram se aprofundar no assunto e não percam tanto tempo quanto eu.


Autor: É formado em Direito, especialista em Direito Público e Direito Aeronáutico. Tenente Coronel da Polícia Militar de São Paulo e por 23 anos trabalhou no Grupamento de Radiopatrulha Aérea – “João Negrão”. É piloto comercial de helicóptero e instrutor de voo, além de possuir cursos de Segurança de Voo e SGSO.