EDUARDO ALEXANDRE BENI

INTRODUÇÃO

Inicialmente é importante dizer que a evolução histórica da legislação brasileira sobre o tema teve grande influência na atual situação enfrentada pela Aviação de Segurança Pública. Para entender melhor o assunto é importante a leitura do artigo Direito Aeronáutico e a Aviação de Segurança Pública e, assim, analisar os aspectos legais da ANAC ter ou não competência para regular essa aviação.

O presente artigo tem como objetivo discutir os aspectos legais que envolvem a Aviação de Segurança Pública executadas pelas Polícias e Corpos de Bombeiros Militares do Brasil e analisar a competência legal de a ANAC regulamentar e regular a Aviação de Segurança Pública, apesar de sua atribuição principal ser a de regular e fiscalizar as atividades de aviação civil e de infraestrutura aeronáutica e aeroportuária.

Diante deste cenário, a ANAC, utilizando-se dos regulamentos do extinto Departamento de Aviação Civil (DAC), regulamentou esta atividade através de instrumentos normativos não primários, porém, onde a lei deveria dispor, estes instrumentos foram utilizados para normatizar a atividade constitucional de Segurança Pública executada pela União, Distrito Federal e Estados.

1. A atuação da Agência Nacional de Aviação Civil frente à Aviação de Segurança Pública.

A ordem econômica na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 170, é fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tendo por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados, entre outros, os princípios da soberania nacional, propriedade privada, função social da propriedade, livre concorrência, defesa do consumidor, etc.

Por sua vez, RAUL MACHADO HORTA conclui, em trabalho realizado sobre a ordem econômica na nova Constituição, que:

A ordem econômica da Constituição está impregnada de princípios e soluções contraditórias. Ora inflete no rumo do capitalismo neoliberal, consagrando os valores fundamentais desse sistema, ora avança no sentido do intervencionismo sistemático e do dirigismo planificador, com elementos socializadores. As cláusulas dotadas de função transformadora, que se difundem na ordem econômica, poderão unilateralizar os caminhos da Constituição e conduzir a soluções não expressamente contempladas no seu texto. [1]

Neste raciocínio, a Constituição consagrou uma economia de mercado descentralizada e possibilitou ao Estado intervir como agente normativo e regulador da atividade econômica, exercendo, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, indicativo para o setor privado[2].

Ainda sobre ordem econômica, conforme o artigo 177 da Constituição Federal, constituem monopólio da União as jazidas, refinação e transporte de origem nacional de petróleo e gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos; a importação e exportação desses produtos e derivados básicos e exploração nuclear, sendo, portanto, exclusividade do Brasil explorar essa atividade econômica.

Por sua vez, o artigo 178 da Constituição Federal, também ao tratar dos princípios gerais da atividade econômica, atribuiu à lei competência para dispor sobre a ordenação dos transportes aéreos, devendo a ordenação do transporte internacional, observar os acordos firmados pela União, atendido o princípio da reciprocidade. Sendo assim, a Constituição ao tratar de transporte aéreo, seja ele doméstico ou internacional, tratou dos serviços aéreos públicos, realizados mediante concessão ou permissão, e que compõem a Aviação Civil, definidos pelo CBAer e pela Convenção sobre Aviação Civil Internacional.

Neste contexto, como reflexão e oportuno, a ANAC, entidade integrante da Administração Pública Federal indireta, submetida a regime autárquico especial, vinculada ao Ministério da Defesa, tem, como dito, atribuição principal de regular e fiscalizar as atividades de Aviação Civil e de infraestrutura aeronáutica e aeroportuária e a lei delimitou tal atuação, ou seja, as expressões infraestrutura aeronáutica e infraestrutura aeroportuária, referem-se às infra-struturas civis, não se aplicando às infraestruturas militares.

Em 18 de fevereiro de 2009, através do Decreto No 6.780, aprovou-se a Política Nacional de Aviação Civil (PNAC), formulada pelo Conselho Nacional de Aviação Civil (CONAC), onde a Secretaria de Aviação Civil do Ministério da Defesa deverá acompanhar a implementação da PNAC por parte dos órgãos e entidades responsáveis pela gestão, regulação e fiscalização da aviação civil, da infraestrutura aeroportuária civil e da infraestrutura de navegação aérea civil.

Neste contexto, verifica-se que não há no texto qualquer citação da atividade de aviação realizada pelo Estado, seja ela militar ou de segurança pública, o que não é de estranhar, pois trata, exclusivamente, da regulação da Aviação Civil, sendo o principal propósito da PNAC, segundo o decreto, assegurar à sociedade brasileira o desenvolvimento de sistema de Aviação Civil amplo, seguro, eficiente, econômico, moderno, concorrencial, compatível com a sustentabilidade ambiental, integrado às demais modalidades de transporte e alicerçado na capacidade produtiva e de prestação de serviços nos âmbitos nacional, sul-americano e mundial.

São objetivos da PNAC a segurança operacional e a proteção contra atos ilícitos, a prestação do serviço adequado, a proteção ao meio ambiente, a proteção ao consumidor, o desenvolvimento da Aviação Civil e a eficiência das operações da Aviação Civil, portanto, totalmente alinhados com suas atribuições legais, que é regular esta atividade econômica.

Esta agência reguladora segue os Tratados Internacionais, dos quais o Brasil é signatário, cumpre o estabelecido por sua Lei de criação e seu Regulamento e tem como instrumentos jurídicos principais o CBAer, a Lei do Aeronauta e do Aeroviário.

A Agência atua como autoridade de aviação civil e tem como objetivo orientar e implementar diretrizes e políticas de aviação civil, especialmente no que se refere à representação do Brasil em convenções, acordos ou tratados internacionais, estabelecer concessões de infraestrutura aeroportuária, concessões ou permissões de serviços aéreos públicos, além de regular o regime tarifário dos serviços executados na Aviação Civil.

Considerando que a criação desta agência foi resultado de uma ampla reforma do Estado, em razão da evolução política e econômica que o Poder Público passou nas últimas décadas, houve também forte influência da comunidade aeronáutica, pois pretendia a “desmilitarização” da Aviação Civil, já que cabia ao DAC, Órgão do Comando da Aeronáutica, orientar, coordenar e controlar as atividades de Aviação Civil, além do fato de pleitear a profissionalização da atividade, evitando assim, a descontinuidade dos serviços, motivada, muita vezes, pela alta rotatividade dos oficiais e praças da Força Aérea Brasileira no exercício de suas funções.

No contexto da regulação da Aviação Civil, houve uma desvinculação Estatal da Administração dessa atividade econômica, substituindo a intervenção estatal pelos princípios da livre concorrência, o que, em tese, implicou na definição de regras estáveis e capazes de assegurar o aprimoramento no desempenho dos serviços aéreos, tornando-os mais eficientes, regulares e como preços mais competitivos.

Este modelo foi adotado, destarte o aspecto político-filosófico, tendo em vista a necessidade de dotar-se um órgão independente de poderes para exercer o controle da execução dos contratos de concessão e a fiscalização dos serviços e das concessionárias, editando normas regulamentares, reprimindo condutas abusivas e até resolvendo conflitos entre os agentes, envolvidos na prestação dos serviços aéreos.

Desta feita, surge um novo formato na administração do Estado e que gerou muita discussão na Doutrina, pois todo ato decorrente das ações impostas pela Agência reguladora são vinculados à lei de sua criação e toda a geração de regras e regulamentos devem primar pelo princípio da legalidade, o que, em tese, não permite à Agência regulamentar atividades, serviços ou condutas, senão aquelas que a lei assim o permitiu. Como essência, sua competência é regulatória e derivada da lei.

Diante desse novo contexto, da lei derivam as competências dos entes regulatórios, elaborada pelo Poder Legislativo e sancionada pelo Poder Executivo. Só por exceção, fundada em razões de emergência ou urgência, poder-se-ia admitir a chamada autoatribuição de competência, mediante medida provisória ou, eventualmente, nos limites em que for cabível, de decreto contendo regulamentos.

Sobre a delegação de competências aos entes reguladores, convém estabelecer determinados limites legais, pois o Estado de Direito deve ser preservado, evitando atribuições que ostentem caráter absoluto, situação de sujeição indefinida de determinadas pessoas aos poderes públicos, distorcendo, assim, a regra geral de que as restrições às liberdades constituem uma exceção ao sistema de direitos e garantias constitucionais.

As competências conferidas aos entes regulatórios apresentam certas peculiaridades quanto à sua natureza e à sua extensão. A eles são conferidas as atribuições administrativas relacionadas à fiscalização dos serviços e ao cumprimento das condições ditadas pelos contratos de concessão, abrangendo desde o controle sobre a fixação de tarifas até as sanções de natureza disciplinar, além das que têm por objeto a instituição de condutas competitivas, como mecanismo de estímulo à eficiência e forma de evitar os abusos do poder econômico.

Assim, por delegação legislativa, foi conferida à ANAC a competência de regular e fiscalizar as atividades de aviação civil e de infraestrutura aeronáutica e aeroportuária, ficando, também, sob sua atribuição, através do CONAC[3], a representação do Brasil em convenções, acordos, tratados e atos de transporte aéreo internacional com outros países ou organizações internacionais de aviação civil; o estabelecimento do modelo de concessão de infraestrutura aeroportuária, a ser submetido ao Presidente da República; a outorga de serviços aéreos; a suplementação de recursos para aeroportos de interesse estratégico, econômico ou turístico; e a aplicabilidade do instituto da concessão ou da permissão na exploração comercial de serviços aéreos.

A ANAC, além das atribuições de Política Econômica e Segurança Aérea, tem como objetivo adotar medidas necessárias para o atendimento do interesse público e para o desenvolvimento e fomento da Aviação Civil, da infraestrutura aeronáutica e aeroportuária do País, atuando com independência, legalidade, impessoalidade e publicidade[4], e apresenta 49 incisos que estipulam suas competências, e dentre elas, como deveria ser, não há qualquer previsão legal sobre regular ou regulamentar a Aviação de Segurança Pública, pois é notório que suas atribuições restringem-se às atividades econômicas, pois as autarquias não podem transcender o escopo legal trazido pelas leis que as criam.

Desta feita é, numa primeira análise, inconstitucional qualquer tentativa de uma agência reguladora intervir na atuação do Estado, principalmente na segurança pública, pois, além de não ter atribuição constitucional para tal mister, estaria afrontando o princípio da legalidade e da reserva legal, da separação absoluta das funções dos Poderes e da indelegabilidade.

Conforme Estudo Geral da Lei da ANAC realizado pela Agência de Informações de Ciências Aeronáuticas (AGICA)[5] afirma de forma precisa que:

Na sua atividade de política econômica, a ANAC executa, implementa as diretrizes do governo na infraestrutura aeronáutica civil. Esta execução se dá mediante uma técnica jurídica de direito administrativo denominado de “técnica normativa regulatória” ou, simplesmente, “direito regulatório” da Aviação Civil
Quanto à função de segurança de transporte aéreo civil, pode-se dizer que a atuação administrativa da ANAC é idêntica à atividade que já vinha desempenhando o extinto DAC.
As atribuições de política econômica e segurança aérea se manifestam, na perspectiva da técnica jurídica, como atos administrativos e são classificadas nas seguintes categorias: normativos regulatórios; normativos comuns; administrativos não-normativos (ordinatórios, negociais e punitivos) e administrativos jurisdicionais.
Por exemplo, ao estabelecer as regras de distribuição de slots em aeroportos saturados, a ANAC pratica um ato de política econômica que tem a forma de um ato administrativo normativo regulatório. Ao criar regras sobre certificação de produtos aeronáuticos, a ANAC pratica um ato de segurança aérea que tem a forma de um ato administrativo normativo comum. Ao autorizar um serviço de transporte aéreo não – regular, a ANAC pratica um ato administrativo não-normativo de caráter negocial. Ao impor uma sanção ao aeronauta que lança propaganda sem autorização, a ANAC pratica um ato administrativo não-normativo punitivo. Ao estabelecer regras de trabalho aos seus funcionários, a ANAC pratica um ato administrativo não-normativo, mas ordinatório. Ao julgar uma questão de interesse de duas empresas aéreas no que toca, por exemplo, à propaganda em aeroportos, a ANAC estará praticando um ato administrativo jurisdicional.
Em outras palavras, a ANAC pratica diversos atos administrativos por delegação da lei que a criou.
Ainda, aqueles atos administrativos normativos, conforme a sua natureza, destinação, extensão e fonte, poderão se materializar sob a forma de regimento, resolução, portaria, regulamento, etc.
É importante esclarecer desde já que nem a ANAC, nem qualquer outra agência nacional, tem atribuição para emitir leis no seu sentido formal, o que é atributo exclusivo do Poder Legislativo. A ANAC somente produz instrumentos normativos não primários por delegação da lei que a instituiu, ou seja, a ANAC só pode estabelecer regras decorrentes de leis formais, pois tudo que produz é vinculado ao que a lei estabelece. Como se estudará melhor adiante, as regras de conduta criadas pela ANAC, desde que respeitado o princípio da legalidade, têm poder normativo máximo de decreto presidencial, ou seja, são atos de Poder Executivo.
Também não faz parte das atribuições da ANAC exercer ato jurisdicional, que é função privativa do Poder Judiciário. As agências praticam apenas atos administrativos, o que não impede as pessoas de socorrerem-se ao Poder Judiciário.
Por isso, é necessário cautela na compreensão da afirmação, por exemplo, de que as agências reguladoras são concebidas como organismos independentes e autônomos em relação à estrutura tripartite dos poderes estatais.
As decisões da ANAC podem ser anuladas pelo Poder Judiciário, caso contrariem as leis ou a Constituição Federal, mas não podem ser revogadas pelo Poder Judiciário, porque revogar significa cancelar a decisão administrativa, mediante revisão do seu mérito, do seu conteúdo, o que não poderia ser feito pelo Judiciário sem infringir o princípio constitucional da separação dos Poderes. E isto porque não pode a autoridade judiciária intervir no ponto de vista da atuação da autoridade administrativa.
Deve-se, então, realçar que quando se diz que a ANAC “legisla” para o setor de Aviação Civil, na verdade, tecnicamente, ela produz, como dito, instrumentos normativos não primários comuns ou regulatórias que disciplinam a Aviação Civil e a infra-estrutura aeronáutica.
Na verdade, através de seus atos administrativos normativos (comuns ou regulatórios), está a ANAC praticando atos que, antes de sua criação, eram produzidos pelo Presidente da República sob a forma de decreto ou pelo DAC, através de portarias.

Desta feita, existem duas concepções jurídicas básicas a respeito da natureza das atribuições das agências reguladoras no Brasil: A doutrina que nega poder normativo (mesmo administrativo) às agências e a que afirma que as agências têm poder normativo legal. Independentemente dos entendimentos existentes na doutrina e sendo coerente com os ditames constitucionais é correto atribuir às agências poder normativo administrativo, desde que fiel ao princípio da legalidade e da reserva legal, ou seja, todos os atos devem vincular-se à sua lei de criação e às suas atribuições e competências atribuídas.

O princípio da legalidade, de abrangência ampla, significa a submissão e o respeito à lei, ou a atuação dentro da esfera estabelecida pelo legislador, por outro lado o princípio da reserva legal consiste em estatuir que a regulamentação de determinadas matérias devam ser feitas por lei formal. A Constituição, ao reservar determinado conteúdo específico à lei, está instituindo o princípio da reserva legal. Este princípio pode ser absoluto ou relativo. Será absoluto quando a norma constitucional determinar que para sua integral regulamentação necessite de edição de lei formal, devendo ser um ato normativo emanado do Congresso Nacional e elaborado de acordo com o devido processo legislativo. Quando a Constituição exigir a edição de lei formal sobre determinado tema, permitindo que sejam fixados parâmetros de atuação para o órgão administrativo, permitida sua complementação mediante ato infra-legal, respeitados os limites impostos pela lei, estará falando de princípio da reserva legal relativa.[6]

O Estado regulador e segurança pública são assuntos tratados constitucionalmente de forma diferente e sem qualquer vínculo, pois o primeiro refere-se à atividade econômica e o segundo refere-se à Defesa do Estado e das Instituições Democráticas, e dentre elas, inclui-se a Polícia Militar e Corpos de Bombeiros Militares, com atribuições de polícia ostensiva, preservação da ordem pública e a execução de atividades de defesa civil, além do fato das polícias militares e corpos de bombeiros militares serem forças auxiliares e reserva do Exército, subordinando-se aos Governadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios.[7]

Com a criação da ANAC, todos os regulamentos brasileiros de homologação aeronáutica (RBHA) foram absorvidos do extinto DAC, que à época era um órgão pertencente ao Comando da Aeronáutica[8] e responsável pela orientação normativa da Aviação Civil, porém, neste período já se questionava a legalidade deste Departamento regulamentar atividade de polícia, mesmo não havendo previsão legal. Como na década de 80 a Aviação de Segurança Pública ainda era embrionária, mas prevista em Lei, as Organizações Policias Militares passaram a seguir as regras da Aviação Civil, adaptadas para essa atividade.

2. Regulamento Brasileiro de Homologação Aeronáutica (RBHA), instrumento normativo não primário

Ao longo de 25 anos, foram editadas inúmeras portarias regulamentando a Aviação de Segurança Pública, sendo que o instrumento normativo não primário que vige nos dias atuais é o Regulamento Brasileiro de Homologação Aeronáutica 91, subparte K, que estipula as regras gerais de operação para aeronaves civis. Neste regulamento intricado, a Subparte A – Geral, item 91.1, delimita seu campo de aplicação, e o subitem (f) inclui as atividades policiais e de busca e salvamento como sendo serviços aéreos especializados, entretanto, à luz do CBAer, especialmente no que diz respeito à definição de serviços aéreos e sua abrangência, a aviação policial não se ajusta a este tipo de serviço.

Como dito, os serviços aéreos especializados são definidos como serviços aéreos públicos, atividades remuneradas, e para seu funcionamento, preenchidos os requisitos legais e regulamentares, necessitam de autorização da autoridade de aviação civil. Tal situação não se coaduna com a atividade de segurança pública, pois seria no mínimo inconstitucional, dizer que esta atividade de Estado poderia ser considerada serviço aéreo público, pois se assim o fosse, poder-se-ia, mediante concessão ou autorização, permitir que empresas explorassem tais atividades.

O serviço aéreo especializado é modalidade também do serviço aéreo privado, desde que não haja remuneração e seja de uso exclusivo do proprietário ou operador da aeronave, que não é o caso da Aviação de Segurança Pública, pois não é atividade privada, mas essencialmente pública e de prerrogativa exclusiva do Estado.

A subparte do regulamento é dividida em subitens, iniciando com aplicabilidade, conceituação, aeronaves autorizadas, tripulações, habilitação, treinamento e proficiência, condições especiais de operação, responsabilidade das autoridades e manutenção de aeronaves.

Foram feitas, por analogia às regras da Aviação Civil, ao longo de suas disposições, adaptações à Aviação de Segurança Pública, o que acarretou uma série de impropriedades jurídicas, desde as exigências para a formação e habilitação de tripulantes, manutenção de aeronaves, limites operacionais, até definir as responsabilidades das autoridades de segurança pública e defesa civil. Neste aspecto, todas as exigências para o exercício desta atividade e principalmente sobre as responsabilidades das autoridades do Estado são decorrentes da lei e não poderiam ter sido tratadas através de regulamento, instituído por instrumento normativo não primário oriundos de uma Agência Reguladora.

Ao conceituar as operações aéreas de segurança pública e/ou de defesa civil a norma relacionou as atividades típicas de polícia administrativa, judiciária, de bombeiros e de defesa civil, tais como:

Policiamento ostensivo e investigativo; ações de inteligência; apoio ao cumprimento de mandado judicial; controle de tumultos, distúrbios e motins; escoltas e transporte de dignitários, presos, valores, cargas; aeromédico, transportes de enfermos e órgãos humanos e resgate; busca, salvamento terrestre e aquático; controle de tráfego rodoviário, ferroviário e urbano; prevenção e combate a incêndios; patrulhamento urbano, rural, ambiental, litorâneo e de fronteiras; e outras operações autorizadas pela ANAC.

Ora, essas atividades são definidas e autorizadas pela lei e são temas tratados na Constituição Federal, significando, por exemplo, que, segundo esse regulamento, de forma inversa, a ANAC poderia proibir qualquer uma daquelas que permitiu, entretanto, não seria possível, à luz da lei, qualquer tentativa de supressão de qualquer atividade, pois estaria, antes da lei, confrontando o próprio interesse público.

A subparte utiliza ainda o termo a priori ao tratar das condições especiais de operação, dando um caráter provisório às operações policiais com helicópteros e aviões das Polícias e Corpos de Bombeiros Militarares. O DAC, termo ainda utilizado pela norma, pois ainda não houve atualização desses regulamentos, poderia então desautorizar qualquer uma delas. Assim a atual ANAC poderia, por exemplo, desautorizar o pouso em ruas e avenidas para resgatar pessoas, ou ainda, o lançamento do puçá ao mar para salvar um banhista na praia.

Neste mesmo subitem, para autorizar ou executar uma operação aérea, o Órgão e/ou o comandante da aeronave envolvido deve gerenciar os riscos considerando, entre outros, o seguinte:

Se os riscos criados pela operação não irão agravar uma situação já por si grave, se os riscos criados pela operação em relação a terceiros são válidos em termos de “custo benefício”, se os riscos assumidos na operação são aceitáveis face aos objetivos da mesma, e se as tripulações envolvidas estão adequadamente treinadas e aptas à execução da missão.

Ora, esse assunto não deveria ser matéria de regulamento, pois é subjetivo e depende de avaliação situacional, principalmente porque questiona a capacidade das tripulações na consecução de seu trabalho e ingressa na esfera do Direito Administrativo. Por ser mais adequado esse assunto poderia ser tratado em manual de treinamento ou de operações.

Na disposição deste regulamento, a Aviação de Segurança Pública é colocada no mesmo nível da demais subpartes, pois ela trata, não só disso, mas de outros assuntos como, por exemplo, regras de voo, requisitos de equipamentos, instrumentos e certificados, operações especiais de voo, manutenção de aeronaves, regras operacionais de ruído, concessões especiais, etc., assuntos legalmente atribuídos à ANAC e subprodutos da Aviação Civil, exceto a Aviação de Segurança Pública.

É bom que se diga que é indiscutível a competência da ANAC em regular a Aviação Civil, porém não tem atribuição legal para regulamentar ou regular a Aviação de Segurança Pública, pois não se ajusta aos preceitos de sua lei de criação, ao CBAer e muito menos à Constituição Federal.

Por derradeiro, as Polícias Militares, instituições democráticas, cuja atribuição constitucional é a preservação da ordem pública e a polícia ostensiva, executam autorizadas pela lei, a modalidade de policiamento denominado radiopatrulhamento aéreo, sendo, portanto, necessária legislação específica sobre tal atividade, cujo controle e fiscalização deveriam ser oriundos do próprio Estado, exatamente como ocorre com as Forças Armadas, e não por uma agência reguladora, cuja atribuição precípua é regular atividade econômica exercida pela Aviação Civil.

3. Aeronave pública, um exemplo norte-americano.

Inicialmente, é importante dizer que no Brasil todas as aeronaves civis (classificadas em privadas e públicas) são obrigadas a possuir o certificado de aeronavegabilidade, além de cumprir os regulamentos expedidos por esse Órgão, o que não ocorre nos Estados Unidos da América, pois lá as aeronaves  são classificadas em civis e públicas, conforme preconiza a Conveção de Chicago de 1994 e apenas recomendam que as aeronaves públicas sigam os regulamentos expedidos pela FAA (FAR parte 91, parte 125, parte 121 ou 135. etc). A exceção ocorre para as aeronaves governamentais utilizadas em atividades comerciais ou transporte de passageiros, desde que não seja atividade policial ou de bombeiro, conforme prevê a AC Nº 00-1.1, AFS 220, expedida pela FAA (Federal Aviation Administration) e que será abordada futuramente em apartado.

Um exemplo é o que prevê a Circular Consultiva AIR-200, AC No 20-132 do Departamento Americano de Transporte, FAA, onde as aeronaves públicas, sob o FAA Act, não permitem operações fora dos limites do território dos Estados Unidos sem um certificado de aeronavegabilidade válido, entretanto permite o voo doméstico sem o referido certificado.

Sob o FAA Act, com emenda, todas as aeronaves civis registradas nos Estados Unidos, exceto as aeronaves públicas, precisam portar um certificado de aeronavegabilidade para operar.  “Aeronave pública” está definida na seção 101 (36) do FAA Act, conforme segue:

“aeronave de uso exclusivo a serviço de qualquer governo ou subdivisão política, incluindo o governo de qualquer Estado, território ou posse dos Estados Unidos, ou do Distrito de Columbia, mas não incluindo qualquer aeronave de propriedade do governo engajada no transporte de pessoas ou propriedade de objetivos comerciais.”

A FAA recebeu vários questionamentos sobre a aeronave pública.  Uma situação envolveu uma aeronave registrada nos Estados Unidos, arrendada para um governo estrangeiro e que operava em um terceiro país.  O questionamento levantou se as palavras “qualquer governo” na seção 101 (36) do FAA Act eram para ser consideradas literalmente a ponto da aeronave não necessitar do certificado de aeronavegabilidade.

A Seção 1102 do FAA Act requer que a agência aja consistentemente com as obrigações internacionais dos Estados Unidos.  Assim, mesmo que uma aeronave seja definida como uma aeronave pública sob os estatutos dos Estados Unidos e não necessitar portar um certificado de aeronavegabilidade para operações domésticas, o requerimento de portar este certificado para operações internacionais deve ser determinado à luz das obrigações internacionais, desde que não esteja em operação militar, policial ou de alfândega.

O Artigo 31 da Convenção da Aviação Civil Internacional (a Convenção de Chicago, da qual os Estados Unidos fazem parte) requer que toda a aeronave engajada na navegação aérea internacional seja provida do certificado de aeronavegabilidade emitido, ou válido, no estado de registro.

O Artigo 20 deste acordo também requer que toda aeronave engajada na navegação aérea internacional seja registrada.  Somente as “aeronaves do estado” são isentas destes dois requerimentos em virtude da linguagem que aparece no Artigo 3o da Convenção.  O termo “aeronave do estado” é definido no Artigo 3 (b) da Convenção para incluir aquelas utilizadas pelos militares, pelas alfândegas e serviços policiais.

Uma aeronave pública registrada nos Estados Unidos operando nos limites do território dos Estados Unidos não precisa ter um certificado de aeronavegabilidade. Todas as aeronaves registradas nos Estados Unidos engajadas na navegação aérea internacional precisam ter um certificado de aeronavegabilidade válido.  Somente as “aeronaves do estado” (ex.: aquelas utilizadas pelos militares dos Estados Unidos, alfândegas ou polícia) são isentas deste requerimento.

Como se vê nos Estados Unidos da América há um tratamento diferenciado para as aeronaves públicas, pois além da classificação das aeronaves, há, acertadamente,  a preocupação ao tipo de atividade realizada e, nesse sentido, haverá ou não a interferência da FAA.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Verifica-se que esse problema ganha amplitude quando se observa sua disseminação por praticamente todos os Estados brasileiros e no Distrito Federal, operadas pelas Polícias Militares, Corpos de Bombeiros Militares, Polícias Civis, Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal e Força Nacional, além das aeronaves dos Estados para uso dos Governadores e das aeronaves para serviços da Administração Indireta Federal e Estadual, mesmo porque, em alguns Estados, esses órgãos são integrados e com comandos únicos.

Corroborando com esse fato, segundo dados da ANAC[9], há no Brasil 1.255 helicópteros registrados e 10.923 aviões, sendo que, dessas aeronaves, estão registradas no RAB, na categoria Administração Direta Estadual, o total de 222 aeronaves, na categoria Administração Direta Federal, 66 aeronaves, na Administração Direta do Distrito Federal, 07 aeronaves, Administração Indireta Federal, 35 aeronaves e na Administração Indireta Estadual, 01 aeronave, totalizando 331 aeronaves.

A atual situação é resultado da evolução tecnológica e do aumento dos problemas sociais e da necessidade de tornar a polícia mais eficiente e eficaz e, apesar da grandeza desta aviação do Estado, a ANAC trata essas Organizações como operadoras civis. Esse tratamento é decorrente do disposto no Artigo 107, do CBA, que classifica como militares apenas as aeronaves pertencentes às Forças Armadas (Marinha, Exército e Aeronáutica).

Segundo o disposto no parágrafo 2o, do citado artigo, as aeronaves civis são dividas em duas categorias: as privadas e as públicas.

Para a lei, as aeronaves operadas pelo Estado são classificadas como civis públicas. Em conseqüência, apesar dos aeronavegantes das aeronaves das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares serem constitucionalmente definidos como militares do Estado, são tratados pela ANAC, por analogia à norma infraconstitucional, como civis, principalmente no que diz respeito à habilitação, licença e funções do comandante de aeronave policial, em desrespeito à Constituição Federal de 1988, às Constituições do Estados e à Convenção sobre Aviação Civil Internacional.

A ANAC, balizada por sua lei de criação, utiliza o CBAer como ferramenta jurídica para a regulação da Aviação Civil, porém esta lei é uma evolução de outras quatro normas legais que atuaram ao longo do século passado e é sabido que em nenhuma delas a Aviação de Segurança Pública, como preconiza a OACI, no âmbito internacional, foi abordada, o que não se justifica, pois, apesar desta aviação ter surgido no início da década de 70, ela deveria prever, como previu a Aviação Militar e, conforme visto, as legislações americanas.

Ficou demonstrado que essas normas abrangem exclusivamente a Aviação Civil em todos os seus aspectos de infraestrutura aeroportuária, uso do espaço aéreo, regras de direito internacional, responsabilidade civil, registro e contratos de aeronaves, tripulação, concessão e permissão de serviços públicos para transporte de pessoas e coisas, infrações, garantia de responsabilidade do transportador, etc.

Mesmo assim, desrespeitando preceitos constitucionais, os regulamentos instituídos pela ANAC classificaram a Aviação de Segurança Pública como serviços aéreos especializados e, conseqüente, deram o mesmo tratamento que dão à Aviação Civil.

Aqui não se faz necessária alteração legislativa, pois basta o fiel cumprimento da lei, entretanto, ocorrendo tal pretensão, atualmente não haveria órgão capaz de regulamentar essa aviação, o que gera um dilema e leva novamente ao raciocínio de necessidade de legislação específica. É importante lembrar que a SENASP, através do Conselho Nacional de Aviação de Segurança Pública, vem trabalhando no sentido de dar um novo formato a esta aviação já consolidada no Brasil

Assim, a Aviação de Segurança Pública vai sendo tratada como exploradora de serviço aéreo e cumprindo regulamentos da Aviação Civil, adaptados à sua atividade.


REFERÊNCIAS

Regulamentos americanos consultados e disponíveis em: <http://www.faa.gov/regulations_policies/>

Conteúdo com artigos e textos sobre a ANAC disponível em: <http://www.concursosdaanac.com.br>. Acesso em 03/12/2008, às 22h11min.

Conteúdo sobre a ANAC, regulamentos, licenças, certificados, disponível em: <http://www.anac.gov.br/estatistica/estat26.asp>. Acesso em 02/03/2009, às 11h18min.

Conteúdo sobre a Organização de Aviação Civil Internacional disponíveis em: <http://www.icao.int/cgi/goto_m.pl?cgi/statesDB4.pl?en>. Acesso em 08/02/09, às 19h10min.

Conteúdo sobre Airborne Law Enforcement Association disponível em: <http://www.alea.org/Members/files/103-411.aspx>. Acesso em 15/03/2009, às 20h00min.

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PACHECO, José da Silva, Comentários ao Código Brasileiro de Aeronáutica. 3. ed., São Paulo: Forense, 1990;

PAULO, Marcelo alexandrino Vicente, Direito Administrativo Descomplicado. 14. ed., Rio de Janeiro: Impetus, 2007.


NOTAS

[1] Revista de Informação Legislativa, 1997, p. 224, consultado no site <http://www.senado.gov.br/web/cegraf/ril/Pdf/pdf_133/r133-22.PDF em 06/02/09> às 17h28min. Artigo de FARIAS, Paulo José Leite, Mutação constitucional judicial como mecanismo de adequação da Constituição Econômica à realidade econômica, apud. HORTA, Raul Machado. A Constituição brasileira, 1988: interpretações. Rio de Janeiro: Forense, 1988. A ordem econômica na nova Constituição: problemas e contradições.

[2] Artigo 174 da Constituição Federal de 1988.

[3] Artigo 3º da Lei Nº 11.182 de 2005 que criou a ANAC.

[4] Artigo 8º da Lei Nº 11.182 de 2005 que criou a ANAC e artigo 4º do Regulamento da ANAC, instituído pelo Decreto Nº 5.731 de 20 de março de 2006.

[5] Texto pesquisado no site <http://www.concursosdaanac.com.br>, Estudo da Lei da ANAC, item 3.2 A lei da ANAC sob o aspecto objetivo e 4. Sentido técnico-constitucional dos atos da ANAC, em 03/12/2008, às 22h11min.

[6] MORAES, de Alexandre, Direito Constitucional, 23. ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 42 e 43.

[7] Artigo 144 da Constituição Federal de 1988.

[8] Criado pela Lei Complementar Nº 97 de 09 de julho de 1999 que dispões sobre as normas gerais para a organização, o preparo e o emprego das Forças Armadas, pertencentes ao Ministério de Estado da Defesa.

[9] Texto consultado no http://www.anac.gov.br/estatistica/estat26.asp, em 02/03/2009, às 11h18min.