Mato Grosso do Sul – O boletim de ocorrência informava apenas que peças de avião haviam sido furtadas. De início, ao instaurar inquérito, a investigação suspeitava de uma concorrência entre oficinas . Porém, dez meses após deflagrar a operação Ícaro, em Mato Grosso do Sul, a ação conjunta revolucionou o sistema de vistoria e fiscalização da aviação civil no país, revelando esquemas clandestinos, tráfico de peças e sonegação fiscal.

Polícia está em terceira fase de operação que verifica segurança de voo (Foto: Graziela Rezende/G1 MS)

“A aviação civil possui legislações, porém verificamos que era corriqueiro um reaproveitamento de peças. A denúncia chegou até a delegacia e culminou na apreensão de uma aeronave. A partir daí, a repercussão foi a nível nacional, fazendo a Anac [Agência Nacional de Aviação Civil] rever os procedimentos de fiscalização e controle de peças”, afirmou ao Site a delegada Ana Cláudia Medina, titular da Delegacia Especializada de Combate ao Crime Organizado (Deco) de Campo Grande.

Atualmente, o procedimento instaurado na Deco possui pouco mais de 1 mil páginas, cerca de 700 fotos de aeronaves e endereço de nove locais clandestinos. “Durante as nossas buscas, chegamos a encontrar uma oficina que estava funcionando no quintal de uma casa. Foi neste momento que vislumbramos algo maior e também várias frentes para a operação”, explicou a delegada.

Ao solicitar documentos, no caso de um endereço suspeito, em Campo Grande, a investigação constatou que o proprietário havia assinado um contrato de manutenção no dia 13 de fevereiro de 2015. No entanto, o avião passou por consertos no ano anterior, sem qualquer comunicado à Anac.

“Todo acidente aeronáutico deve ser comunicado e isso gera uma burocracia. Mas o que ocorre em fazendas, por exemplo, é que os proprietários contratam mecânicos, arrumam lá mesmo e depois voltam a voar. No caso da aviação comercial, o controle é bem mais rígido, só que aqui assustamos com o que estava sendo feito”, explicou o perito criminal Domingos Sávio Ribas, que atualmente é diretor do Departamento de Apoio Operacional da Coordenadoria-Geral de Perícias.

Peças vistoriadas durante ação policial (Foto: Divulgação Polícia Civil/MS)Hélices, cubos, motores e outras peças, avaliadas em mais de R$ 2 milhões, foram periciadas e continuam apreendidas. Anterior a esse processo, peritos e técnicos da Anac mantiveram contato diário com fabricantes dos Estados Unidos. “Dependendo do grau, é possível reverter peças, mas encontramos fotos de avião todo estragado e, de repente, desempena, pinta, lixa e está tudo certo”, comentou o perito.

De acordo com fabricantes, quando ocorre um acidente em que, no máximo, 30% de uma peça são danificados, é possível o desempeno. “Achamos casos em que quase 90% do avião estava estragado e fizeram o conserto em oficinas clandestinas. Ou então casos em que o dono leva em uma oficina homologada, mas esta envia a peça para um conserto clandestino e depois entrega e assina algo legalmente”, complementou a delegada.

Aeronave foi apreendida e condenada após verificação da polícia e perito (Foto: Graziela Rezende/G1 MS)

Nas vistorias, a perícia ainda constatou que o avião interditado tinha sido comprado em leilão. Ele pertence a um pecuarista e, da plaqueta de identificação, ao motor e hélice, tudo havia sido alterado. A aeronave, no mês de junho de 2015, havia sofrido um acidente. “Ela caiu de nariz para o chão, ainda com o motor ligado. O proprietário não comunicou o acidente e ainda fez diversas alterações, por isso houve a interdição. Em seguida, a Anac suspendeu o Certificado de Aeronavegabilidade [CA] desta e de mais 46 aeronaves em todo o país”, disse Ana Claudia.

Hélices podem estar irregulares ou terem sido roubadas, diz polícia (Foto: Reprodução/TV Morena)Caso a caso, a polícia disse que os responsáveis devem ser indiciados no artigo 261 do Código Penal, que é o fato de “expor aeronave a risco, causando danos de grande monta”. “Por ser algo inédito, ainda estamos tomando frente e deflagramos a terceira fase da operação, tendo a atribuição criminal como foco. Ao mesmo tempo, técnicos da Anac ficaram muito contentes, dizendo que nunca tinham conseguido apoio da Polícia Civil para fazerem as suas constatações”, ressaltou.

Problemática oculta

Piloto da Polícia Civil há 12 anos, chefe da Seção de Segurança de Voo da Coordenadoria-Geral de Policiamento Aéreo – órgão ligado à Secretaria Estadual de Justiça e Segurança Pública de Mato Grosso do Sul (Sejusp-MS) e membro honorário da Força Aérea Brasileira (FAB), Roberto Medina Filho, de 50 anos, disse que a operação Ícaro representou realmente uma revolução na questão da segurança de voo.

“Esta ação mostrou para a Anac toda a problemática oculta da segurança de voo em um nível mais elevado. Algo que não poderíamos imaginar, como uma peça enviada de uma oficina homologada para outra clandestina, foi desmascarado. É um problema que, até então, era desconhecido pela agência reguladora”, afirmou ao Site o piloto.

Peças apreendidas durante buscas em Campo Grande (Foto: Divulgação Polícia Civil/MS)Inaugurada em 2006, a Anac possui um forte trabalho de inteligência. Já em 2012, de acordo com o gerente de operações Marcelo de Souza Carneiro Lima, foi criada a gerência geral de ação fiscal.

“Essa divisão se estruturou especificamente para cuidar do ilícito, do piloto a empresa de manutenção. E, desde então, temos feito operações com vários parceiros, mas nunca havia sido feita uma ação específica contra oficinas clandestinas”, ressaltou.

Da parceria com a Deco e o Instituto de Criminalística (IC), Lima explicou que houve buscas inéditas e apreensões na casa dos investigados. “As quadrilhas que realizavam clonagem de peças e manutenção clandestina, que inclusive abasteciam outros estados, foram descobertas. Houve apreensão de peças que estavam sendo distribuídas para o Brasil, além da descoberta de roubo de aeronaves para utilização das peças”, comentou.

Por parte da Anac, houve a condenação de 46 aeronaves e fortes indícios de endereços clandestinos de manutenção. “Temos situações de empresas que queriam legalização e tiveram o processo suspenso, bem como mecânicos que não conseguiram legalizar a documentação. Foi um trabalho muito importante. Nunca tinha sido feito isso no Brasil”, ressaltou o gerente de operações.

Aprendizado em ações futuras

Neste momento, a Anac ainda realiza trabalhos de verificação. “Fazemos agora um pente-fino em qualquer oficina que tenha suspeita de ser clandestina. Todo esse conhecimento será usado em casos posteriores. Não podemos dar detalhes das ações em andamento, porém neste momento estamos de olho em várias localidades do país”, garantiu Lima.

Sobre o trabalho em equipe, ele disse que os colegas ficaram emocionados com o resultado da ação. “Os indiciamentos de quem estava colocando a aviação civil em risco ainda não começaram. Mas a equipe atuou em escala e vibrou com cada avanço, cada numeração raspada descoberta, cada clone e formamos uma equipe única de trabalho e este foi o diferencial”, avaliou o gerente.

Policiais da Deco e fiscais da Anac em operação, em Campo Grande (Foto: Osvaldo Nóbrega/ TV Morena)

Entenda o caso

A Deco deflagrou, no dia 29 de outubro de 2015, em Campo Grande, a operação Ícaro, que tem por objetivo verificar a utilização de peças furtadas em aeronaves civis e a segurança de voos. Além da Polícia Civil, dois especialistas da Anac trabalharam as buscas. Segundo a delegada Ana Cláudia Medina, a ação foi motivada por uma denúncia de furto e graves acidentes aéreos registrados recentemente. Ao todo, 20 mandados de busca foram cumpridos, sendo em oficinas e residências de suspeitos.

Acidentes

Em outubro do mesmo ano, pelo menos três acidentes aéreos foram registrados no estado, com uma morte. Segundo a Anac, em 2014, foram seis acidentes aéreos, sendo dois fatais. O levantamento não considera ocorrências que envolveram atos ilíticos, aeronaves experimentais, operações policiais ou aeronaves de matrícula estrangeira.

O primeiro deles em 21 de janeiro, em Campo Grande, durante voo de instrução. Em 12 de fevereiro, outra aeronave sofreu acidente, em Chapadão do Sul, onde uma pessoa morreu. No dia 4 de abril, um acidente aconteceu em Corguinho. No dia 23 de abril, outro acidente foi registrado em Taquarussu.

Em junho, no dia 7, o baixo nível de combustível provocou outro acidente em Nova Andradina. Em 6 de dezembro, outro acidente foi registrado em Campo Grande, quando outra morte foi registrada.

Polícia retira peças de avião em aeroporto particular de Campo Grande (Foto: Gabriela Pavão/Arquivo G1 MS)

Anac na última década

Além do trabalho de inteligência que se consolidou nos últimos dez anos, a Anac também contabiliza e possui índices de acidentes ocorridos com aeronaves da aviação geral. Neste setor da aviação regular (comercial), o Brasil é um dos poucos países que estabeleceram o cálculo e os dados são da própria agência, encaminhados para o Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa), do Comando da Aeronáutica.

Transporte aéreo regular de passageiros (Foto: Anac / Divulgação)A última estatística divulgada são de todos aqueles que ocorreram no ano anterior e foram registrados, oficialmente, até o dia 11 de janeiro de 2015.

São de aeronaves regularmente registradas no Brasil, independentemente de terem ocorrido em solo nacional ou internacional.

Com os dados, a intenção da agência é extrair indicadores para seus processos de certificação, fiscalização, normatização e regulação técnica.

Jogos Olímpicos e Paralímpicos 2016

Os aeroportos do Rio de Janeiro, com o evento esportivo, estão em seu ápice de movimentação. São milhares de passageiros diariamente e, com isso, cerca de 500 servidores estão atuando nos dez aeroportos coordenados pela agência. As equipes atuam nos mais diversos serviços: informação aos passageiros, inspeção, adequação das operações de aeronaves estrangeiras no Brasil e também o monitoramento.

“Fizemos desde a operação Rio 20, Copa das Confederações, Jornada Mundial da Juventude, Copa do Mundo e agora o evento mais complexo de todos, que é a Olimpíada. É um evento de muito volume de passageiros, não só a agência, mas todo o setor de aviação teve que se organizar para que tudo ocorresse da melhor forma possível. Tivemos um sucesso muito grande e agora a responsabilidade é ainda maior”, finalizou o gerente mineiro.

Fiscais da Agência durante os jogos olímpicos 2016 (Foto: Anac / Divulgação)

Fonte: G1.