Seripa II, PreviNE, Edição Nº 18 de Abril de 2015
Saraiva, G. Leonardo

Em 7 de dezembro de 2011, por volta das 16h30min local, o helicóptero modelo AS350-B2, de marcas N37SH, que realizava um voo turístico, caiu cerca de 10 minutos após a decolagem, 14 milhas a leste de Las Vegas, EUA . O piloto e quatro passageiros faleceram no acidente, e o helicóptero foi destruído pelo impacto e pelo incêndio após a queda.

Durante o exame dos destroços, um dos três servocomandos que atuam sobre o rotor principal foi encontrado com a sua biela desconectada. O parafuso, a arruela, a porca autofreno e o contrapino que fixam a biela à haste de comando ao rotor principal não foram encontrados.

A investigação revelou que o componente foi fixado de forma inadequada, durante a manutenção realizada no dia anterior à ocorrência aeronáutica.

O National Transport Safety Board – NTSB, órgão investigador nos EUA, identificou nesse evento uma deficiente manutenção, caracterizada por:

1. reutilização de uma porca de autofreno desgastada;

2. deficiente ou não instalação do contrapino; e

3. deficiente supervisão do serviço de manutenção.

O NTSB cita ainda que o aspecto que contribuiu para a deficiente ou não instalação do contrapino foi a fadiga do mecânico e a falta de etapas de tarefas de manutenção claramente definidas, bem como fadiga do inspetor e deficiente supervisão do serviço realizado.

O que nos chama a atenção, ao ler este relatório de investigação, é a profundidade alcançada na investigação dessa ocorrência, na busca de fatores contribuintes que antecedem o serviço de manutenção. Fica evidente a abordagem sistêmica e organizacional dos acidentes comumente denominados como “deficiente manutenção”, por parte do NTSB.

Assim, na busca da redução dos índices de acidentes denominados como deficiente manutenção, a Federal Aviation Administration – FAA organizou pesquisas e trabalhos em grupo com a comunidade científica e aeronáutica dos EUA, Canadá e Europa.

Um workshop liderado pela FAA em 2010 elencou fatores que preocupam a segurança na manutenção, tais como: documentação técnica; fadiga; cultura de segurança na manutenção; investigação de eventos e ocorrências de manutenção; atenção aos itens de inspeção obrigatórios; conhecimentos técnicos e habilidades na manutenção; e pressão no trabalho.

Documentação técnica

O Comitê de Segurança de Voo Canadense, em 2004, determinou que as três principais causas de acidentes provocados por “deficiente manutenção” foram:

1. falha em seguir publicações técnicas ou procedimentos;

2. utilização de procedimento não autorizado, não previsto nas publicações técnicas; e

3. complacência da supervisão em relação à falta de utilização de publicações técnicas ou de procedimentos de manutenção.

Um estudo da FAA, de 2001, ressalta que “documentação técnica” é o principal fator que contribui para ocorrências de manutenção. Na maioria dos casos, resultantes de deficiente utilização dos manuais que estavam disponíveis.

Segundo estudo da National Aeronautics and Space Administration – NASA, a partir de relatórios do programa Aviation Safety Reporting System – ASRS, 45 a 60% de incidentes de manutenção têm relação com a documentação técnica.

Para a FAA, os usuários dos manuais desperdiçam de 25% a 40% do seu tempo procurando e complementando as informações durante o uso das documentações de manutenção.

Assim, é necessário “entrar” ainda mais nas causalidades da “deficiência no uso da documentação”. Não se pode mais apenas aceitar este chavão, que não esclarece e não melhora esse aspecto no tocante à Segurança de Voo. É necessário perguntar: Por que houve deficiente uso da documentação?

É muito importante ter em mente que essa falha vai muito além do rótulo e do preconceito de um “mecânico preguiçoso ou desatento” que “escolhe” não seguir os procedimentos. De fato, uma série de outros fatores está por trás disso.

Em um workshop realizado em Atlanta – EUA, em 2012, liderado pela FAA, identificou-se que as 5 maiores causas raízes para o fator contribuinte documentação técnica são:

1. prática e cultura organizacional que permitem ou encorajam a não observância das documentações técnicas;

2. documentação deficiente, quanto aos procedimentos técnicos;

3. documentações conflitantes para a mesma tarefa;

4. dificuldade de executar os procedimentos; e

5. fatores relacionados aos indivíduos ou ao ambiente de trabalho.

Naquele workshop realizado nos EUA foram selecionados 25 desafios para a melhoria da documentação técnica, e os destaques foram:

1. padronização de requisitos FAA;

2. precisão e eficiência da documentação;

3. cultura de descumprimento da documentação;

4. integração e gestão da documentação técnica;

5. padronização da documentação técnica para toda a indústria aeronáutica;

6. clareza de requisitos de regulação;

7. disponibilidade dos conteúdos; e

8. qualidade e facilidade de uso dos dados oriundos do fabricante.

Indústrias que não são da área de aviação estão adotando o uso sincronizado de dispositivos digitais pessoais com anexos em vídeo para acesso de documentação técnica via celular. Esse é um passo que a aviação dará, mas não se pode esperar a tecnologia chegar. É preciso, desde já, uma abordagem proativa na identificação de causas raízes e na busca de soluções.

Fadiga

A fadiga pode ser provocada por muitos fatores, seja por esforço físico, mental, ou pela quantidade inadequada de sono. Ela diminui a “prontidão”, que inclui uma série de fatores associados à aptidão humana para o serviço.

A fadiga provoca quedas de desempenho semelhantes à provocada pela ingestão de álcool. As pessoas fadigadas têm dificuldade para reconhecer o próprio cansaço e sua perda de vigilância. Ainda, a aviação vivencia um momento de escassez de mão de obra especializada de manutenção, e esse cenário resulta em aumento da carga de trabalho, que também pode levar à fadiga. Diante disso, cresce a importância de uma gestão da fadiga no nível organizacional e regulatório.

A FAA, em 2011, elencou uma lista de classificação de ordem das ações mais importantes para reduzir os riscos de fadiga na manutenção:

1. melhorar a conscientização do empregador e do trabalhador sobre a fadiga;

2. estudar a fadiga e medidas individuais para mitigação desse risco;

3. regular o Sistema de Gestão de Risco de Fadiga;

4. quantificar o impacto da fadiga na eficiência e segurança operacional;

5. regulamentar limites de horas de serviço;

6. estabelecer base de dados de risco provocados por fadiga por meio de sistemas de reporte de eventos existentes;

7. integrar a consciência da fadiga na cultura de segurança da organização;

9. criar e implantar ferramentas de avaliação da fadiga; e

10. melhorar a colaboração do gerenciamento da fadiga dentro e entre organizações.

Outro desafio é o de melhorar as investigações no tocante à participação da fadiga nas ocorrências de manutenção, possibilitando, assim, levantar o custo desse fator contribuinte e fomentar programas destinados a mitigar esse risco no nível organizacional.

Cultura de segurança na manutenção

A cultura de segurança pode ser considerada abstrata, no entanto há uma série de critérios concretos para avaliar uma cultura de segurança saudável. Por exemplo, uma organização com uma cultura de segurança saudável muitas vezes possui um sistema ativo e aderente de notificação e investigação de eventos e uma política de “cultura justa”.

Não há dúvida de que é difícil mudar a cultura de uma organização. O pessoal de manutenção normalmente tem dificuldade para trabalhar com conceitos abstratos como o de cultura de segurança. Contudo, ela pode ser mais enraizada, por meio de programas e procedimentos organizacionais. Uma vez que uma organização estabeleça programas de premiações de funcionários pelo cumprimento de procedimentos, uma cultura de segurança saudável deverá se estabelecer.

O workshop realizado pela FAA, em 2010, sugeriu ações que podem ajudar as organizações a abordarem a cultura de segurança na manutenção:

1. não esperar um regulamento sobre a cultura de segurança;

2. adotar uma cultura de segurança de cima para baixo;

3. utilizar os programas de segurança e de Fatores Humanos para promover e garantir uma cultura de segurança saudável;

4. utilizar cálculos de custos de ocorrências para justificar programas promocionais;

5. contratar consultores para auxiliar as mudanças e a implantação de uma cultura de segurança;

6. ter paciência – a mudança de cultura é lenta;

7. reforçar as boas práticas de cultura existentes; e

8. implementar oportunidades de melhoria na organização.

Investigação de ocorrências de manutenção

O propósito de um processo de investigação de ocorrências de manutenção tem a finalidade de captar e analisar informações que se transformarão em dados úteis para a Segurança de Voo.

Segundo o manual de Fatores Humanos na Manutenção (FHM) da FAA, de 2002, a manutenção foi o principal fator contribuinte de 8,3% de mais de 100 acidentes dos Estados Unidos, a partir da década de 1990, relacionados com aeronaves de transporte de passageiros. Eventos de manutenção estão presentes em 26% dos acidentes em todo o mundo.

A dificuldade de implantar um sistema de investigação reside na falta de um processo que determine sistematicamente os fatores contribuintes. Eventos e fatores contribuintes devem ser classificados de acordo com um sistema padronizado, para que os dados sejam parametrizados, analisados, resumidos, que mostrem tendências e permitam comparações.

Outra grande dificuldade que determina a eficiência de um programa de investigação de ocorrências é a cultura organizacional, que influencia diretamente a motivação de realizar reportes, originando, assim, uma amostra contaminada.

Há diversos exemplos de ferramentas que padronizam e sistematizam as investigações de ocorrências na manutenção já em uso no mundo, como o programa MEDA – Maintenance Error Decision Aid, da Boeing, e o HFACS-ME – Human Factors Analysis and Classification System – Maintenance, sistema de classificação desenvolvido pela Marinha norte-americana.

A aplicação bem-sucedida de um programa sistematizado de investigação de ocorrências de manutenção, como o MEDA, por exemplo, não se resume em simples adoção e aplicação do formulário de investigação. Constitui-se de pelo menos um projeto de implantação, um setor de pessoal específico para implantação, treinamento adequado para todos os funcionários, compromisso corporativo para uma cultura justa, aplicação efetiva das recomendações e comunicação das lições aprendidas a partir dos dados do programa.

Um sistema de análise de ocorrência, como o MEDA, pode integrar e compartilhar informações com programas de observação de ameaças, como o LOSA – Line Operations Safety Audit, aplicado na manutenção.

Um sistema eficiente de identificação e análise de ocorrências será, ainda, uma ferramenta útil ao levantar os custos de erros e de ações corretivas. Justificará as despesas com programas de segurança e atestará a sua eficiência operacional e o retorno em receita financeira para a organização.

Atenção aos itens de inspeção obrigatórios

Um número significativo de acidentes é devido ao não cumprimento de itens de inspeção obrigatórios. Para abordar esse aspecto, que impacta diretamente a segurança na manutenção, deve-se adotar uma combinação de ações sobre aspectos como cultura de segurança, questões de documentação técnica, profissionalismo, responsabilização e elevação da prioridade dos Fatores Humanos na Manutenção, além de efetividade na fiscalização.

Conhecimentos técnicos e habilidades na manutenção

É fato que a aviação no Brasil e no mundo vem aumentando significativamente sua demanda por novas contratações de profissionais de manutenção, em virtude do crescimento das frotas de aeronaves. Uma das consequências dessa elevada demanda é a contratação de um número cada vez maior de recém-formados para composição de equipes de manutenção. Assim, os programas e currículos dos cursos de formação de mecânicos devem garantir a qualidade na formação desses novos profissionais. Deve-se evitar a redução de tempo para orientação e treinamento dessa força de trabalho pós-formação e evitar também a redução do tempo dos programas on the job training – OJT.

Outro aspecto interessante diz respeito ao conteúdo dos currículos. Matérias como o uso de documentação técnica, utilização de novas tecnologias e noções de Fatores Humanos, bem como de Segurança de Voo, devem fazer parte dos programas das escolas de formação de profissionais para a manutenção. A International Civil Aviation Organization-ICAO, o NTSB, a FAA, a ANAC, o CENIPA e outras entidades governamentais de aviação têm recomendado com frequência a formação em FHM para organizações de manutenção. Dessa forma, reconhecem seu impacto na Segurança de Voo, na eficiência e na qualidade dos serviços de manutenção.

Uma alternativa para melhorar a formação e aquisição de habilidades é a criação de regulamentação com o propósito de fomentar o acompanhamento dos custos de erros na manutenção, o que poderá resultar em maior conscientização, ao se pensar em reduzir os investimentos em treinamentos adicionais.

Pressão no trabalho

Na maioria dos casos, as tarefas específicas têm um tempo de desempenho esperado. Independentemente do tipo de manutenção, o custo e margem para o trabalho de manutenção são baseados no tempo. Como resultado, ocorre uma pressão explícita ou implícita para a finalização do serviço. Infelizmente, a pressão no trabalho é um terreno fértil para o descumprimento de normas, levando ao chamado “aqui todo mundo faz assim”. É impossível eliminar a pressão no local de trabalho, uma vez que faz parte da natureza do negócio. Aeronaves são caras e, enquanto estão no chão, não geram receita. Assim, deve-se pelo menos buscar a mitigação dos seus efeitos, e isso é um desafio. Pressão, geralmente, está presente na cultura organizacional.

Quando se está inserido na cultura de uma organização, há dificuldades de percepção de pressão no trabalho. Uma ação que pode auxiliar é a sistematização das investigações de ocorrências, a fim de identificar se a pressão no local de trabalho foi um fator contribuinte para cada erro de manutenção e avaliar os seus impactos.

Outro desafio é identificar formas de atenuar o impacto da pressão com base em dados, dando ao pessoal de manutenção critérios para tratar a pressão direta ou indireta. Os gestores e supervisores devem ter ferramentas e meios para discutir este assunto com a alta administração da organização.

Comentários finais

A FAA vem liderando importantes pesquisas e desenvolvimento de projetos, junto a toda a comunidade aeronáutica e instituições de ensino e pesquisa, a fim de reduzir índices de acidentes tipificados como deficiente manutenção aeronáutica. Os fatores que mais preocupam a segurança na manutenção, citados neste artigo, foram elencados pela FAA e estão sendo discutidos em diversos workshops realizados nos EUA, nesses últimos anos.

Assim, esperam-se mudanças e melhorias regulatórias e de procedimentos, nos EUA, o que acabará impactando e influenciando outros agentes reguladores em torno do mundo. Dessa forma, considera-se importante que as empresas mantenedoras e a indústria aeronáutica acompanhem os estudos da FAA, por dois motivos: antecipar-se às mudanças e implantar o “estado da arte”, a “última palavra” para os temas relacionados à segurança, eficiência e confiabilidade na manutenção aeronáutica.

Conclui-se que os acidentes aeronáuticos devem ser investigados com profundidade, no tocante aos aspectos tipificados como deficiente manutenção. Urge, ainda, uma abordagem preditiva organizacional, por meio de ações estratégicas sistêmicas em relação aos maiores desafios para a segurança no setor de manutenção aeronáutica.


Fonte: Seripa II, PreviNE, Edição Nº 18 de Abril de 2015.

Texto adaptado de: Saraiva, G. Leonardo, e-mail: [email protected]. Ações estratégicas para a segurança na manutenção aeronáutica – Quais são os desafios? Revista Dédalo, n.17, p. 20 – 22, set., 2014.