Portugal – O presidente da empresa que gere a maior frota aérea que combate incêndios no País revela, em entrevista à VISÃO, o que sabe sobre os negócios do fogo. Ricardo Dias diz que Portugal sempre funcionou “num esquema de consórcio cartelizado” e que o Estado pagou 20% a 30% mais porque as empresas se juntavam e “faziam o que queriam”.

Ricardo Dias é presidente da Everjets, empresa que gere 
25 helicópteros leves para combate a incêndios que está sendo processado pelo Estado por ter assinado um contrato para operar seis Kamov e só ter três em condições de voar. Na entrevista, diz já ter sido aliciado a juntar-se a um consórcio de empresas portuguesas. E revela: durante anos empresas do setor usaram esse método para garantir que o Estado pagasse muito mais do que as operações efetivamente custavam.

© MIGUEL RIOPA/ Getty Images Cartéis, esquemas e estado dos helicópteros. Os "negócios do fogo" revelados nesta entrevista.

© MIGUEL RIOPA/ Getty Images Cartéis, esquemas e estado dos helicópteros. Os “negócios do fogo” revelados nesta entrevista.

A justiça espanhola está investigando um cartel entre empresas que operam meios aéreos de combate aos incêndios – e que assinaram contratos também com Portugal. Alguma vez a Everjets foi aliciada para um esquema deste gênero?

A Everjets nunca fez parte desses cartéis. Existiram sim tentativas de aproximação de algumas empresas, por prepostos de empresas, para tentar nos incluírem em consórcio para futuros concursos.

Quais empresas?

Não posso revelar.

E se o Ministério Público, que recebeu informações da justiça espanhola, quiser ouví-lo?

Estou disponível para contar o que sei. Posso dizer que não estou falando de empresas espanholas. Esses prepostos de empresas que me abordaram falavam por empresas portuguesas.

Já tinha ouvido falar destes esquemas?

São bastante conhecidos no mundo da aviação. Portugal sempre funcionou num esquema de consórcio cartelizado. Quando todas as empresas portuguesas se juntam num consórcio e fazem o preço qual é o nome disso? Deve ser muito fácil investigar. Basta abrir o Google e procurar o nome das empresas que agiam em consórcio.

Qual era o lucro?

20 ou 30 por cento. Sei que o Estado pagava mais 20 a 30 por cento pelos helicópteros leves do que paga hoje à Everjets. Sei que a Everjets em 2012 acabou com um feudo de três a quatro empresas que se reuniam, faziam o preço e depois repartiam os lucros. Não havia concorrência, faziam o que queriam. Muitas vezes deixavam as licitações fracassarem.

Como assim?

Ninguém concorria, abria-se uma nova licitação e assim o preço subia. Hoje temos um contrato que, dividido, dá cerca de 300 mil euros por cada helicóptero. Outras empresas chegaram a vendê-los por quase 500 mil. Deixavam as licitações fracassarem, ou faziam ajustes diretos. Não percebo, porque mesmo fazendo a este preço ganha-se dinheiro. Não posso dizer que não, é o nosso negócio. Mas é um preço justo.

Uma das empresas investigadas em Espanha ganhou mais de 
30 milhões de euros em Portugal através de ajustes diretos. 
Parece-lhe excessivo?

Muito. O problema dos ajustes é que quando as empresas sabem que do outro lado há teoricamente falta de meios, podem subir o preço. 
O ajuste direto é como ter um carro pronto hoje, isso custa mais.

A reportagem fez as contas em 2016 e concluiu que até 2015 cada hora de voo de um Kamov custou cerca de 35 mil euros.

Agora são 5.333 euros por hora de voo. Os contribuintes pagam hoje o mesmo praticamente por tudo – operação e manutenção 
– que pagaram só pela manutenção até 2015. Ainda por cima uma manutenção que era tão boa que deixou quatro helicópteros parados. Não é preciso ir a Coimbra fazer um curso para saber o que isto é.

Tente ser imparcial. Honestamente, o Estado não iria economizar se colocasse a Força Aérea a combater os incêndios?

Se tivesse de operar toda a estrutura da fase Charlie, a Força Aérea teria de ter uma estrutura dez vezes superior à que tem hoje. O privado sabe ter uma estrutura leve e um preço competitivo, sabe negociar o preço do helicóptero. O Estado não sabe fazer nada disso. Mas lanço então o desafio. Porque não vem já este ano ajudar com os EH-101? Se a ANPC [Autoridade Nacional de Proteção Civil] deixar, emprestamos os bambis sobressalentes dos Kamov. Nos EUA, a Força Aérea usa quase toda a frota para apoiar os privados nos incêndios. Será que a Força Aérea quer mesmo apagar incêndios? Os bombeiros querem a Força Aérea? Um piloto da Força Aérea recebe ordens de bombeiros?

No dia em que se pensou que um Canadair tinha caído, vimos um helicóptero do INEM retornar para base pois ficou sem combustível. É normal ocorrer isso?

Um helicóptero de emergência médica não devia ficar sem combustível. Ou não era o indicado para o serviço ou não está a cumprir os requisitos previstos da operação, porque o procedimento obriga o abastecimento sempre após o pouso. É uma pergunta a ser feita a outra pessoa, mas que não é normal não é.

Quando se fala em processos relacionados com o combate aos incêndios fala-se da Everjets, que foi alvo de buscas em 2016. O senhor já foi ouvido pelo Ministério Público?

Nunca. Sei que ganhamos as licitações de forma limpa.

O Ministério Público suspeita que o edital de licitação dos Kamov chegou à Everjets antecipadamente por intermédio de Miguel Macedo.

É uma mentira total. Quando a empresa foi adquirida pelos novos acionistas, em janeiro de 2015, o contrato dos Kamov já tinha sido adjudicado. Os acionistas anteriores tiveram acesso ao edital de licitação de forma lícita. 
É também mentira a história de termos subcontratado uma empresa espanhola que tinha recebido esse edital [a Faasa]. Foram ao meu computador, tiraram os emails. Não tinha lá nada do Miguel Macedo, nada. Nem o conheço.

Um piloto que opera num cenário como o de Pedrógão Grande poderia ter noção do que estava ocorrendo na EN 236?

Só se alguém lhe desse a localização e dissesse que havia ali gente morrendo podia ter feito alguma coisa.

Muitos falam da dificuldade de um helicóptero combater um incêndio em cenários em que a fumaça é muito intensa. Mas a verdade é que estes incêndios tiveram grandes dimensões e os helicópteros operaram lá.

O problema do fumaça é que o piloto opera um voo visual e precisa ter referências do solo, senão corre o risco de colidir com as montanhas ou contra as árvores. E os motores não podem aspirar fumaça. Agora… claro que qualquer incêndio faz fumaça e se isso fosse um impedimento completo nenhum piloto podia operar lá.

Que tipo de treinamento tem um piloto de combate a incêndio?

Todos os anos fazem um treinamento recorrente de combate aos incêndios, simulações. Há muitos críticos dos Kamov. O Kamov leva um pouco menos de mil litros em relação ao avião Canadair, mas é mais rápido para reabastecer de água, logo o número de toneladas de água lançados no fogo é muito superior. Tudo isto com a grande vantagem de os Kamov serem nossos, contra os aviões que têm de ser alugados.

Tivemos três Kamov nestes incêndios. Mas a Everjets assinou um contrato para operar 5.

Para operar 6, mas um já se sabia que poderia ser dado como perdido, tinha sofrido um acidente em 2012. Neste momento operam os únicos que ficaram disponíveis porque a Everjets os herdou em condições deploráveis de manutenção do operador anterior, a Heliportugal. Podíamos ter cinco, não temos por inércia. E podiam fazer toda a diferença ao País. Fomos para tribunal arbitral para sermos ressarcidos de prejuízos precisamente pelo fato de assinarmos uma coisa e termos outra. A empresa montou uma estrutura de custos para operar cinco helicópteros e não três. Há um deficit que terá de ser reequilibrado. Basicamente é uma fraude, mas a fraude sabemos bem que não é motivada pelo Estado. O Estado é tão vítima quanto a Everjets. O Estado saberá o que fazer para ser ressarcido do prejuízo que pode ser de mais de 20 milhões de euros.

Quanto é que a Everjets reclama do Estado?

Dez milhões. Serão precisos mais dez para aprontar os helicópteros.

A reportagem já revelou imagens que mostravam o estado em que se encontravam estes Kamov. Alguns estavam voando sem condições de segurança. Alguém devia ser responsabilizado criminalmente?

Só fico espantado como é que ainda não foi. Estamos falando de helicópteros que não servem só para apagar incêndio, durante o inverno transportam doentes.

E onde ficam aqui as responsabilidades da ANPC?

É relativa porque tinha a gestão da aeronavegabilidade. Não vão querer que vá verificar se o indivíduo mudou o óleo ou apertou o parafuso. Esta responsabilidade era da manutenção. E aí temos reparações com paus, peças de origem duvidosa, peças que não podiam estar montadas nestes Kamov e um sem-número de coisas graves.

Afinal, quando a Everjets recebeu os Kamov em 2015, algum estava em condições de voar?

O que estava mais próximo de poder voar ainda precisou de um conserto de 200 mil euros. Que o Estado pagou. Deviam estar todos tipo Rolls-Royce para o preço que se pagava.

Porque o Estado não pôs logo os outros dois a voar, pagando esses conserto?

O que nos disseram é que era muito dinheiro, que ia ser após. O após foi até hoje.

Quem é a Everjets?

Aviação

A empresa de aviação privada ganhou em 2012 a licitação pública para operar 25 helicópteros leves de combate a incêndios (alguns são da empresa, outros alugados pela mesma) e, em 2015, ganhou a licitação para operar e fazer a manutenção da frota de helicópteros Kamov comprados pelo Estado português. Atualmente é a empresa com a maior frota de aeronaves de combate aos incêndios em Portugal.

Sob suspeita

Em janeiro de 2016, a PJ fez buscas na sede da Everjets, na ANPC e no aeródromo de Ponte de Sor. Até hoje, os responsáveis da Everjets não foram ouvidos pelo Ministério Público.

O ministro

Miguel Macedo foi acusado no processo Vistos Gold por ter enviado à Faasa, empresa investigada em Espanha por ligações ao “cartel do fogo”, o edital de licitação de 2014 para contratação da operação e manutenção dos Kamov. A empresa não chegou a concorrer, mas segundo o Ministério Público teria sido mais tarde subcontratada pela Everjets, a empresa que ganhou a licitação. Ricardo Dias, presidente do conselho de administração da Everjets, nega. Diz que a empresa nunca subcontratou a Faasa, não teve acesso ilícito ao edital de licitação nem tem qualquer relação com o antigo ministro do Governo de Passos Coelho.

Fonte: Visão, por Sílvia Caneco / Entrevista publicada na Revista VISÃO 1270 de 6 de julho.