Responsabilidade penal do comandante de aeronave de asas rotativas da Polícia Militar de Minas Gerais em face das missões de Defesa Social
20 de junho de 2017 15min de leitura
20 de junho de 2017 15min de leitura
SANDRO VIEIRA CORRÊA
Major da Polícia Militar de Minas Gerais
INTRODUÇÃO
Responsabilidade penal trata-se do dever de responder perante o ordenamento jurídico vigente sobre qualquer afronta ou vilipêndio aos seus ditames, por fato capitulado como crime ou contravenção penal. A aviação de asas rotativas (helicóptero) da Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG), assim como em outras organizações públicas de Defesa Social no Brasil, realiza serviços aéreos de polícia ostensiva, salvamento e resgate, defesa civil e proteção ambiental.
Leia a monografia: A Responsabilidade penal do comandante de aeronave de asas rotativas da Polícia Militar de Minas Gerais em face das missões de Defesa Social.
De acordo com a Lei Federal nº 7.565, de 19 de dezembro de 1986, que institui o Código Brasileiro de Aeronáutica (CBA), o Comandante da aeronave é responsável pela operação e segurança da aeronave. Os demais membros da tripulação ficam subordinados, técnica e disciplinarmente, a ele.
A aviação de Defesa Social das instituições militares estaduais não foi contemplada pela normatização exclusiva destinada às Forças Armadas. Todavia, as Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares são considerados, por força constitucional, como instituições militares estaduais. Mas, de forma incongruente, a aviação de Defesa Social é regida pelas normas atinentes à aviação civil emanadas pela Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC).
Como não há um detalhamento normativo das responsabilidades a bordo da aeronave de Defesa Social, e fica para a instituição estabelecer os padrões de treinamento e emprego de sua tripulação, verifica-se um contraponto, uma antinomia em relação à atribuição categórica de uma responsabilidade, quase que exclusiva, ao Comandante de Aeronave, em virtude de seu dever funcional, de tudo o que acontece em relação à aeronave, desde sua apresentação para o voo até a entrega da aeronave, ao passo que os demais componentes da Guarnição Aérea, nesse contexto, têm atribuições específicas e de alta relevância para a consecução dos serviços atinentes às missões de Defesa Social.
Portanto, a atual legislação da Aviação Civil aplicada às unidades aéreas dos órgãos de Defesa Social não se mostra suficiente para sustentar o amparo no caso de um questionamento jurídico penal ante a ocorrência de um evento danoso que resulte ofensa à integridade física de seres humanos ou prejuízo material decorrentes de atividades relativas ao voo em missões policiais ou de defesa civil.
Uma normatização que apresenta lacunas, como é o caso das regras atinentes à aviação de segurança pública, não pode ser adotada com exclusividade diante da necessidade de uma tomada de decisão pelo juiz. Além disso, uma decisão judicial em sede de infração penal, em tese, cometida pelo Comandante de Aeronave de Defesa Social, que esteja lastreada nos ditames legais atualmente existentes, pode resultar em injustiça que repercutirá em toda uma classe de profissionais.
COMPETÊNCIA ADMINISTRATIVA PARA NORMATIZAÇÃO E PADRONIZAÇÃO DE PROCEDIMENTOS PARA A ATIVIDADE AÉREA DE DEFESA SOCIAL
A falta de posicionamento do CBA e normatização federal decorrente obrigaram as instituições de Defesa Social a desenvolverem, de forma conjunta ou isolada, mecanismos que se apresentam num viés normativo que padronizam procedimentos de atuação, notadamente na seara de desempenho das guarnições aéreas empregadas no cenário da Defesa Social.
Verifica-se que a Administração Pública e, de forma específica, a Polícia Militar, pode e deve emitir atos administrativos normativos para definir ações e procedimentos que serão executados pelos seus servidores, desde que não sejam contrários às leis em vigor.
Então, ressalta-se que, naquilo que a legislação aeronáutica se mostra omissa ou insipiente, a unidade aérea pode definir procedimentos operacionais padronizados que irão nortear a atuação da Guarnição Aérea. Essas regras ou normas definidoras de procedimentos de atuação podem ser estabelecidas por intermédio de memorandos, ordens de serviços, instruções ou outro tipo de ato normativo administrativo.
DIREITO PENAL BRASILEIRO
Tanto a Constituição da República Federativa do Brasil quanto a Constituição do Estado de Minas Gerais denominam os integrantes da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros Militar como militares estaduais.
O Decreto-lei Federal nº 3.914, de 9 de dezembro de 1941 (Lei de Introdução ao Código Penal), estabelece a seguinte definição de crime: “[…] considera-se crime a infração penal a que a lei comina pena de reclusão ou detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa […]”.
Quanto ao crime militar, o Brasil adotou, por meio de seu código, condutas tipificadas como crime militar que podem ser praticadas pelos militares das Forças Armadas e pelos militares estaduais, por fazerem parte de instituições que têm como pilares básicos a hierarquia e a disciplina.
Quanto aos conceitos de Lei penal em branco e lacuna da lei, Bitencourt (2008, p. 170) assevera que leis penais em branco “[…] são as de conteúdo incompleto, vago, lacunoso, que necessitam ser complementadas por outras normas jurídicas[…]”. Em relação à lacuna da lei, trata-se de uma omissão, de um vazio ou de uma falha existente no ordenamento legislativo, observados no texto de uma lei ou corpo de uma regulamentação o que não permite a justa adequação ao caso concreto.
Essa omissão é equacionada por meio das chamadas técnicas de integração que valem da analogia, dos costumes e dos princípios gerais do direito para a resolução jurídica do caso concreto.
Tal fundamentação teórica contribui para a compreensão da intrínseca relação do Direito Penal com a atividade do Comandante de Aeronave da PMMG nas missões de Defesa Social, especificamente quanto a sua responsabilidade e dos demais componentes da Guarnição Aérea nas atividades às quais estão expostos diuturnamente, à medida que lidam com o bem maior da existência humana: a vida.
COMANDANTE DE AERONAVE DE DEFESA SOCIAL: NORMATIZAÇÃO REGULATÓRIA
O CBA dá providências e institui sanções em relação a situações tipicamente referentes à aviação civil, ainda porque foi elaborado com base nos preceitos adotados pela Organização da Aviação Civil Internacional. Cita-se o Decreto Federal n° 21.713, de 26 de março de 1946, que ratificou o Decreto-lei Federal n° 7.952, de 11 de setembro de 1945, cujo preâmbulo traz: “Promulga a Convenção sobre Aviação Civil Internacional, concluída em Chicago a 7 de dezembro de 1944 e firmada pelo Brasil, em Washington, a 29 de maio de 1945”.
O mesmo decreto estabelece que será aplicável unicamente a aeronaves civis, e não a aeronaves de propriedade do Governo, e que são consideradas de propriedade do Governo as utilizadas para serviços policiais.
Portanto, constata-se que o Brasil está em desacordo com a norma da qual é signatário quando trata da aviação policial na mesma legislação que elenca a aviação civil. Salienta-se que, à época da promulgação pelo Brasil da Convenção de Chicago, o termo “aeronave policial” já era utilizado.
É fato que o serviço policial com a utilização de aeronaves no Brasil, mormente helicópteros, teve sua adoção e estabelecimentos nos moldes atuais, a partir da década de 1980. No entanto, o legislador não demonstrou interesse no que concerne a essa modalidade de policiamento e com a proporção que tomaria nos anos seguintes e deixou de mencioná-la no CBA.
Em 2011 foi criada a Secretaria de Aviação Civil da Presidência da República, cuja estrutura regimental foi definida em maio de 2011 pelo Decreto Federal nº 7 476. Nesse regimento, constata-se que o tema aviação de Defesa Social não foi abordado e o único momento que menciona Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares é quanto ao pedido de cessão de seus servidores estaduais à Secretaria de Aviação Civil, por meio do art. 22.
Verifica-se que a criação da ANAC em 2005, teve como escopo a regulação e a fiscalização da aviação civil no Brasil. Assim, a administração dos serviços públicos e privados relativos ao voo no Brasil saiu da responsabilidade do extinto Departamento de Aviação Civil, que era um órgão pertencente ao Comando da Aeronáutica e foi repassada à ANAC – uma incongruência, porquanto o referido plano tem como cerne a redução do déficit público de saneamento das finanças governamentais, por meio da transferência para a iniciativa privada das atividades exercidas pelo Estado de forma dispendiosa e indevida.
Outra anomalia verificada foi a substituição de um órgão diretivo e normativo como o DAC, por uma agência reguladora, que, além de suas funções de regulação e fiscalização, ou seja, típica função de controle da prestação de serviços públicos concedidos ou permissionados pelo Estado, passou a emitir normatização técnica, o que encontra questionamentos na visão de juristas e doutrinadores.
Com o passar dos anos, o serviço aéreo de Defesa Social mostra-se diversificado e complexo, sobretudo porque a atividade aérea compreende um intrínseco risco aos militares que a exercem e também à sociedade quanto aos procedimentos próprios realizados pela GuAer, quais sejam, voos à baixa altura e sobre áreas habitadas.
Todavia, a legislação referente às atividades de aviação policial, sobretudo as normas da ANAC, não acompanhou a evolução da complexidade e diversidade do serviço agora prestado, do desenvolvimento tecnológico, da exigência das instituições de fiscalização dos órgãos públicos como o Ministério Público e o Judiciário, da imprensa, que se mostra presente em todos os aspectos do cotidiano, e da própria sociedade, que se encontra atenta a todos os acontecimentos conjunturais.
Assim, constata-se uma contradição no que tange à atuação de uma guarnição formada por militares estaduais sujeitos ao Código Penal Militar que tripulam uma aeronave classificada como civil pública. Uma incongruência jurídica pelo fato de constarem no referido Código infrações penais castrenses cujos tipos penais elencam situações relativas a embarque, desembarque, de bordo e dano.
O CBA define como tripulantes as pessoas devidamente habilitadas que exercem função a bordo da aeronave, denominadas aeronautas. No Título V, artigos 156 a 173 da Lei, há o tratamento dos assuntos atinentes à tripulação, sua composição, licenças e certificados e sobre o Comandante de Aeronave. Na elaboração da Lei, a intenção do legislador foi a de privilegiar a função de Comandante de Aeronave como um todo, defini-lo como principal tripulante a bordo e atribuir-lhe responsabilidades que lhe proporcionem a autoridade suficiente para a realização de um voo seguro.
Em momento algum, o legislador teve a intenção de equiparar as atribuições de um Comandante de Aeronave da aviação comercial, por exemplo, em relação a um Comandante de Aeronave de Defesa Social, mesmo porque, à época da edição da lei, a aviação de segurança pública estava iniciando seus trabalhos.
Todavia, a ANAC e a Secretaria de Aviação Civil insistem na manutenção da aviação de segurança pública dentro dos ditames da aviação civil como um todo. Continuam a contrariar o art. 3º da Convenção de Chicago, que, taxativamente, refere-se à sua aplicação unicamente a aeronaves civis e não a aeronaves do governo, assim consideradas aquelas de propriedade do governo e usadas para serviços militares, alfandegários ou policiais.
O item 91.961, da subparte K da Regulamento Brasileiro de Homologação Aeronáutica (RBHA) 91, prevê condições especiais de operação autorizadas às atividades aéreas de segurança pública, em especial às relacionadas ao pouso e decolagem em locais não homologados ou registrados, em áreas de pouso eventual, embarque e desembarque de passageiros com os motores em funcionamento e acordos com os órgãos de controle do tráfego aéreo da localidade.
No entanto, as atividades aéreas de segurança pública não se restringem a tais atividades, em face da existência de uma diversidade de procedimentos que são realizados por uma guarnição aérea de Defesa Social, como a necessidade da realização de disparos de arma de fogo a bordo da aeronave no intuito de cessar injusta agressão contra si ou terceiros.
Uma GuAer da PMMG, em configuração policial, é composta por quatro policiais militares: um primeiro Piloto/Comandante de Aeronave, um segundo Piloto/Comandante de Operações Aéreas e dois Tripulantes Operacionais. Cada um deles possui funções específicas delineadas em normatização institucional da PMMG e responsabilidades quanto ao desempenho dos serviços que lhes são afetos.
Dessa forma, insere-se a necessidade de adequada interação entre os componentes da aludida guarnição em termos de treinamento, o que leva a um condicionamento e relacionamento interpessoal satisfatórios, para o estabelecimento da coordenação e do gerenciamento dos recursos da tripulação, ou seja, da utilização efetiva de todos os recursos como equipamentos, procedimentos e pessoas, para alcançar a eficiência da segurança de voo.
Ainda quanto ao exercício da atividade aérea policial e de defesa civil, constata-se que sua execução submete a tripulação policial a uma gama de riscos recorrentes e rotineiros e enseja a possibilidade da ocorrência de situações que possam resultar no cometimento de infrações penais comuns ou militares, além da possível responsabilidade civil que se evidencia de forma objetiva para o Estado e subjetiva para o servidor público militar.
Então, a partir das constatações afloradas, verifica-se que o Comandante de Aeronave de Defesa Social está sujeito aos ditames de responsabilidade e competência constantes no CBA que podem levar o juiz a uma interpretação jurídica equivocada e uma consequente imputação penal injusta, no caso do desencadeamento de uma infração penal por algum membro da GuAer, comprometendo assim, a necessária segurança jurídica para exercício das atividades aéreas de Defesa Social.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A atual legislação aeronáutica, que permeia o serviço de aviação de segurança pública, mostra-se equivocada e eivada de questionamentos constitucionais à medida que destoa do art. 3° da Convenção de Chicago, ao se omitir em tratar a aviação policial de forma apartada, como é feito com a aviação das Forças Armadas.
Constatou-se que a atual legislação da aviação civil aplicada às unidades aéreas dos órgãos de Defesa Social não se mostra suficiente para sustentar o amparo no caso de um questionamento jurídico penal perante a ocorrência de um evento danoso que resulte ofensa à integridade física de seres humanos ou prejuízo material decorrentes de atividades relativas ao voo em missões policiais.
Em uma situação extrema, a ordem do disparo, regularmente parte do Comandante da Aeronave, todavia, pela necessidade de uma pronta e rápida resposta, a interlocução entre Comandante e Tripulante Operacional pode ficar prejudicada e, baseado nas situações de excludente de ilicitude, o último pode agir de iniciativa e efetuar o disparo para salvar a tripulação.
Uma infinidade de hipóteses e casos já constatados pode ser citada, porquanto o que insta elencar é a não-responsabilidade exclusiva do Comandante de Aeronave em relação a todos os procedimentos realizados nas missões aéreas de Defesa Social, o que pode ser interpretado juridicamente como autoria única ou concurso de pessoas. Diferentemente do que preconiza o CBA, que atribui ao Comandante de Aeronave autoridade e responsabilidade exclusivas no que concerne ao voo.
Em contrapartida à inércia do legislador federal, cada Estado possuidor de serviços aero policiais desenvolve de forma estanque ou aproveita a doutrina de organizações mais experientes para atuar em defesa e socorro públicos. Para tanto, define procedimentos operacionais que não sejam conflitantes à legislação em vigor e que permitam uma padronização de treinamento e atuação que possam promover o amparo jurídico aos seus servidores.
Por fim, para uma solução paliativa quanto ao abandono legislativo detectado em relação à aviação de segurança pública, sugere-se uma reedição do CBA com estabelecimento de um Título específico que trate da aviação de segurança pública e preveja normas decorrentes que serão definidas por secretaria específica e que a tratativa em relação ao Comandante de Aeronave de segurança pública, ou qualquer nomenclatura que possa imperar, seja de autoridade e responsabilidade na medida de sua atuação.
Está em vias de elaboração desde 2013 o Regulamento Brasileiro de Aviação Civil (RBAC) número 90 que tem como escopo regulamentar situações, processos e procedimentos relativos à Aviação de Estado, no entanto, ainda não foi saneada a incongruência originária relativa às alíneas “a” e “b” do art. 3º da Convenção de Chicago.
A segurança jurídica para os Comandantes de Aeronave e toda tripulação que atua em missões de segurança pública e de defesa civil é a garantia para que se continue a realizar com excelência as atividades de quem leva a efeito “a ajuda que vem do céu”.
Leia a monografia: A Responsabilidade penal do comandante de aeronave de asas rotativas da Polícia Militar de Minas Gerais em face das missões de Defesa Social
Autor: Major da PMMG; Especialista em Segurança Pública (Fundação João Pinheiro, 2013); Especialista em Criminalidade e Segurança Pública (UFMG, 2003); Bacharel em Direito (Faculdade Estácio de Sá, 2013); Chefe da Seção de Segurança de Voo do Btl RpAer, Comandante de Aeronave e Instrutor de Voo.
Publicação autorizada pelo autor. Originalmente publicado na revista O Águia.
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